Há um ano aconteceu a Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (CONABE). Os vídeos estão disponíveis no YouTube. A CONABE foi uma iniciativa inédita na educação brasileira. A CONABE reuniu especialistas do Brasil e do Mundo para discutir os fundamentos científicos de uma política nacional de alfabetização (PNA).
Eu trabalho com dificuldades de aprendizagem
escolar desde 1978, quando fui estagiar nas enfermarias de neurologia da Santa
Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Aprendi a fazer o Exame Neurológico Evolutivo
(ENE). Aprendi também que tem um negócio chamado de dislexia do
desenvolvimento. Só que, no Brasil àquela época era muito difícil identificar
quem tinha e quem não tinha dislexia porque a qualidade do ensino oferecido era
baixíssima. A maioria das crianças não se alfabetizava simplesmente porque não era
ensinada a ler e a escrever. Faziam o quê na escola?
Lá já se vão mais de 40 anos. Não mudou nada. As
crianças continuam não se alfabetizando na escola. Cansei de atender
adolescentes de 15 anos que estavam concluindo o ensino fundamental e eram analfabetos.
Quer dizer, esses jovens passavam de um ano para outro e... continuavam
analfabetos. Aparentemente ninguém, professora, pedagoga, diretora etc., jamais havia se preocupado em alfabetizá-los.
Nesses 40 anos nenhum governo tentou fazer
qualquer coisa para alfabetizar as crianças brasileiras. Ao contrário. Parece
que estavam mais interessados em doutrinar ideologicamente as crianças do que
ensinar-lhes a ler, escrever e fazer contas. Nesse meio tempo o Paulo Freire
foi nomeado patrono do analfabetismo funcional brasileiro. Esse processo todo
culminou na famigerada BNCC, que abriu mão, explicitamente, de alfabetizar as
crianças.
Até que, em 2019 foi lançada a Política
Nacional de Alfabetização, seguida da CONABE, para consolidar sua fundamentação
evidenciaria. Tive a honra de participar da CONABE junto com colegas ilustres
de diversas partes do Brasil e do mundo. Em 40 anos, nenhum governo havia me
perguntado o que eu achava ou deixava de achar sobre educação. Apesar de eu
descascar na clínica o abacaxi resultante do fracasso da pedagogia brasileira.
A partir da CONABE foi criado um grupo de
trabalho que trabalhou intensamente durante um ano e redigiu um documento denominado
Relatório Nacional de Alfabetização Baseado em Evidências (RENABE). O RENABE
será divulgado nas próximas semanas. Aguardem. Alguns dos melhores
especialistas do Brasil deram o melhor de si para revisar a literatura empírica
e procurar estabelecer algumas diretrizes consensuais, fundamentadas em evidências.
Como diz o nome.
Certamente, a PNA, CONABE e o RENABE podem e
devem ser criticados. Certamente poderiam ser melhores e deverão ser aperfeiçoados.
Mas foi o que conseguimos fazer, por enquanto. Já foi muito. Considerando que não
havia nada. Ao menos nada sério e cientificamente fundamentado.
Críticas sempre são bem vindas. O only game in
town na ciência digna do nome é buscar evidências contraditórias, falsificando hipóteses e modelos teóricos. Mas
muitas críticas são injustas, destrutivas e revelam mais o despeito dos seus
formuladores. Revelam a inveja sentida pelos que não fazem nada têm de alguém
que faz algo, por mais modesto que esse algo seja.
Uma das críticas (injustas) foi de que a ênfase
na alfabetização preconizada pela PNA,
supostamente, reduziria o “letramento” ao método fônico. A realidade demonstrou
que essa crítica era desonesta. Foram criados os programas Tempo de Aprender e Contapra Mim.
O programa Tempo de Aprender oferece formação continuada remota para professores
do ciclo de alfabetização. Que eu saiba, mais de 4000 municípios já aderiram de
forma voluntária e algumas centenas de milhares de professores cursaram o
programa.
Mas quero conversar aqui sobre o Conta pra Mim.
As evidências científicas sobre aquisição de literacia e numeracia se acumulam
avalassadoramente mostrando a importância das atividades culturais informais na
família para a educação. As atividades de contar histórias para as crianças pequenas
talvez não sejam tão importantes para aprender a ler as palavras. Mas são
fundamentais para adquirir vocabulário e desenvolver os esquemas textuais que
permitem a compreensão leitora. E, portanto, a habilidade de aprender pela
leitura.
Conheço os colegas e colaboraram na elaboração
do Conta para Mim e li muitos dos documentos. O negócio é genial. É um ovo de
Colombo, no sentido de que é algo muito simples que ninguém havia feito antes.
E tudo isso foi feito em menos de dois anos. Quer dizer, muita gente teve
oportunidade de fazer alguma coisa durante mais de 30 anos. Desde a Constituição
de 1988. E não fez nada.
Daí alguém faz muito em dois anos e vêm as críticas
maldosas e invejosas. Como a crítica de que a PNA reduziria a literacia ao método
fônico não se sustentou mais no momento em que apareceu o Conta pra Mim, a
alternativa foi criticar este último. Um grupo de mais de 3000 daqueles “especialistas”
que frequentam os programas da Globolixo resolveu criticar o Conta pra Mim porque
o programa adapta as histórias.
Essa é outra crítica burra, daquelas que acaba
virando tiro no pé. Vejamos. Antes o governo não fornecia nada e agora está
fornecendo histórias adaptadas. Qual é o pó? Será que só se pode adaptar histórias
para torná-las politicamente corretas e afinadas com o ideário esquerdista?
Mas, adaptar histórias constitui um problema em
si? Claro que não sou nenhum especialista em literatura infantil. Graças a Deus.
Não preciso usar a linguagem empolada dessa gente, cheia bakhtinismos e
foucaltismos. Mas eu sei o suficiente para me dar conta de que isso é uma
cretinice. Sei que quem conta um conto, aumenta um ponto. Vejam o caso das
centenas de versões dos mitos gregos. Sei também que a defesa do literalismo textual
se reveste, em grande parte, de uma dose de totalitarismo cultural, de cerceamente
da própria atividade literária.
Sei também da minha experiência pessoal. Que
nesses tempos de relativismo cultural, interseccionalismo e subjetivismo
narcisista parece ser a única que conta. Lá na Colônia, onde me criei, não
tinha muito acesso à Literatura. Em Tuparendi não tinha nem banca de jornais,
quanto mais livraria. Em Santa Rosa tinha uma banca de jornais e um bazar chamado
Organizações Ypiranga. Eu lia o que me caia nas mãos.
Comecei lendo o Monteiro Lobato, que havia sido
a iniciação da minha mãe. Meu pai era da época da Seleta em Prosa e Verso. Até eu
precisar estudar de verdade para o Admissão ao Ginásio, nas vésperas das provas
eu me deitava na rede e lia a Aritmética da Emília, Emília no País da Gramática,
Geografia de Dona Benta, História do Mundo para Crianças etc. No Admissão ao
Ginásio acabou a farra. Tive que ralar pela primeira vez.
Eu adorava ler umas adaptações de diversos
tipos de livro de folclore, literatura, história etc., os quais misturavam
texto com história em quadrinhos. Primeiro eu lia as histórias em quadrinho.
Ficava curioso. Queria mais. O recurso então era ler o texto. Lembro-me de um
livro sobre o Júlio César. Aprendi que, às margens do Rubicão, ele teria dito “Alea
jacta est”. Durante meses o Júlio César foi meu herói. Foi assim também que
tomei conhecimento da História em duas Cidades. Foi muito mais tarde que
descobri que o Edmund Burke havia sentido um horror semelhante ao meu com as
atrocidades cometidas na Revolução Francesa. e em todas que vieram depois,
emendo eu.Também ia com as amigas da minha irmã ler fotonovelas, tomar
coca-cola e comer sonhos no Bar do Roos. Deve ter sido lá que começou a minha ceva.
Um advogado amigo do meu pai, o Dr. Ney Goulart,
morava em Santa Rosa. Nós éramos fascinados com os filhos dele, Maria Clarice e
José César. Eles eram um pouco mais velhos do que eu e meus irmãos e tinham uma
turma mais urbana de amigos. Envolviam-se com atividades diferentes daquelas usuais
lá no mato e na roça de Tuparendi. O José César tinha muito orgulho de uma coleção
de livros de detetives que ele guardava no fundo do seu guarda-roupa. Os mais
cobiçados eram os da Brigitte Monfort. Eu pegava emprestado e lia um depois do
outro. Eram proibidos para menores de 16 anos. Evidentemente, àquela época eu
ainda estava longe dos 16. Isso só redobrava o prazer.
Houve um sábado que estávamos numa festa de
aniversário na Casa da Maria Clarice e do José César. Não sei porque cargas d’água
fui lá no Ypiranga. No mostruário tinha um o Livro de Ouro da Mitologia, de Thomas
Bulfinch. Eu já tinha lido o Monteiro Lobato. Meu preferido eram os Doze
Trabalhos de Hércules. Comecei a folhear o livro. Fiquei doidinho. Voltei
correndo para a festa e pussuqueei a minha mãe até ela convencer o meu pai a me
dar o dinheiro para comprar o livro. Fiquei vários meses envolvido e
fantasiando com o Livro de Ouro da Mitologia. Foi um achado.
Tinha também as coleções de folhetos da Abril
Cultural: Os Imortais da Literatura Universal; Personagens da Nossa História;
Grandes Personagens da História Universal. A Abril Cultural também contribuiu
para educar o meu gosto musical através dos Grandes Compositores da Música Clássica,
As Grandes Óperas, História da Música Popular Brasileira. Foi daí que peguei a
mania da ópera.
Até eu ir para Porto Alegre, estudar no Anchieta,
esse era o meu viver. Esse era o meu ler. No Anchieta pude conviver com jovens
de famílias muito mais intelectualizadas do que a minha. Tive oportunidade de
me fascinar com as aulas de literatura do Prof. Cláudio Moreno. Aprendi que
tinha um mundo da cultura superior, ao qual eu não tinha acesso lá na Colônia.
Aprendi que, para além do gosto, havia critérios para avaliar a qualidade literária
de uma obra. Havia uma hierarquia no panteão. Virei freguês das livrarias do
Globo, Kosmos, Sulina, Lima e Palmarinca. Virei freguês das atividades
culturais do Instituto Goethe e dos concertos e recitais da ProArte e OSPA.
Virei rato de cinemateca.
Descobri que tinha um monte de coisa a cujos originais
eu não havia tido acesso. Descobri que tinha muito mais coisa para ler do que
eu sonhara. Foi uma epifania. O estado anterior a essa epifania provavelmente
era muito semelhante ao de uma adolescente vinda no interior de Minas que
atendi.
A menina foi encaminhada por suspeita de “dislexia”
e “TDAH”. Conversei com os pais e fiquei fascinado quando fui conversar com
ela. Ela era uma gracinha. Falava pelos cotovelos e lia tudo que lhe caísse nas
mãos. Seu discurso era encantador. Revelava uma compreensão parcial do mundo, pueril,
ingênua porém oriunda das suas reflexões mais profundas. Genuína. Não tive como
não me identificar profundamente com ela. Solicitei um teste de QI e deu na tampa:
145. A menina era super-dotada e lascaram o diagnóstico de “dislexia”,
provavelmente porque muitas das suas convicções revelavam uma compreensão
parcial da realidade, e “TDAH”, provavelmente porque tinha muito a dizer e falava
pelos cotovelos.
Resumindo a ópera. Os jovens brasileiros recebem
uma “educação” que quando consegue alfabetizá-los, produz analfabetos funcionais.
Não conseguem compreender o que lêem e não conseguem usar a leitura para
aprender. Porisso mesmo não adquirem gosto pela leitura e não vão pra frente na
vida. Daí vem um povo e fica torcendo o nariz para um programa do governo que
oferece uma oportunidade para as crianças adquirirem gosto pela leitura. Não
passa de um bando de pernósticos que deseja, no seu mais íntimo, evitar que a
plebe coma do biscoito fino da literatura.
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