Thursday, March 03, 2022

A PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA SOBRE RACIOCÍNIO QUANTITATIVO E APRENDIZAGEM DA ARITMÉTICA

Curso de extensão

Docente: Vitor Geraldi Haase
Monitora: Elisa Braz Cota
Data: Terças feiras, de 19 a 22 horas, entre 3 e 31 de maio de 2022.
Modalidade: Remota síncrona.
Inscrições: O link para inscrições será divulgado oportunamente.




Sim, vocês leram corretamente. Em maio teremos construtivismo na aprendizagem da aritmética. Sempre me acusaram de ser construtivista. Resolvi sair do armário.
É crescente o interesse por informar a educação matemática na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental Inicial em evidências científicas. Compreender os mecanismos psicológicos envolvidos na aprendizagem da aritmética nessa faixa etária é relevante também para o diagnóstico e intervenção para as dificuldades de aprendizagem da aritmética.
Atualmente, as duas escolas teóricas principais que orientam a investigação sobre os mecanismos cognitivos envolvidos na aprendizagem da aritmética são a Cognição Numérica (processamento de informação) e a Psicologia da Educação Matemática (construtivismo piagetiano).
A pesquisa em Cognição Numérica enfatiza o papel da função referencial do número, ou seja, sua capacidade de representar numerosidades, na aprendizagem da aritmética (Gilmore et al., 2018). A pesquisa sobre Cognição Numérica procura explicar reducionisticamente a aquisição de conceitos e procedimentos aritméticos através de processos mais básicos de manipulação de representações de numerosidade na memória de trabalho, processos de consolidação e resgate da memória de longo prazo, estratégias de processamento controlado etc. Há evidências, por exemplo, de que a memorização dos fatos aritméticos e fluência de cálculo influenciam o desenvolvimento do raciocínio matemático (Calderón-Tena & Caterino, 2016).
A Psicologia da Educação Matemática, segue a orientação construtivista, principalmente piagetiana, enfatizando a função analítica do número, as relações numérico-quantitativas e suas manipulações no interior de um sistema numérico com base em esquemas lógicos de raciocínio quantitativo (Nunes & Bryant, 2022). Há evidências, por exemplo, de que o raciocínio quantitativo desempenh um papel causal na aprendizagem da aritmética (Nunes et al., 2007).
Geralmente, essas duas abordagens são alérgicas uma à outra e prescrevem estratégias distitntas para a educação/reeducação. A Cognição Numérica enfatiza a eficiência de processamento de informação e a memorização, possivelmente em detrimento da compreensão e matematização da realidade. A Psicologia da Educação Matemática enfatiza a compreensão e matematização, possivelmente em detrimento da proficiência.
Essas duas vertentes freqüentemente se engalfinham na chamada "Guerra das Matemáticas" (Ansari, 2015, Klein, 2007). O pensamento construtivista/neopiagetiano tem dominado o cenário da educação matemática há quase cem anos (Klein, 2003, Klein, 2007). Esse predomínio teórico coincide temporalmente com a universalização da educação básica.
A universalização da educação básica colocou desafios aos quais o sistema educacional de poucos países conseguiu responder satisfatoriamente (Haase & Krinzinger, 2019). Como alcançar a inclusão, proporcionando uma educação minimamente condizente com a adaptação bem sucedida na Sociedade do Conhecimento para crianças de todo o espectro de distribuição de habilidades cognitivas, temperamento, motivação, auto-regulação emocional, background familiar e cultural etc.? Na maioria dos países, a resposta ao desafio da inclusão tem sido o esvaziamento curricular e a inflação das notas (Furedi, 2009, Murray, 2008), bem como a terapeutização e transformação da educação em doutrinação ideológica (Arendt, 1961, Furedi, 2009, Sowell, 1993).
A aprendizagem da matemática é um fenômeno multideterminado, complexo demais para reduzir seu sucesso ou fracasso a uma única causa (Haase et al., 2020). A abordagem pedagógica empregada é apenas um dos fatores potencialmente implicados (Sahlgren, 2015). No úlltimo século, o construtitismo, em suas mais diversas instanciações, tem sido a perspectiva dominante, a ponto de se se materializar em orientações curriculares da UNESCO (Marope et al., 2017) e do MEC (Brasil, 2017). To the best of my knowledge, uma política pública de educação matemática informada pela Cognição Numérica nunca foi tentada.
Vejam bem, eu não estou querendo insinuar que o construtivismo é a causa do fracasso na educação matemática. Longe disso. Até porque eu me orgulho de ser um grande construtivista. Sou construtivista, por exemplo, na medida em que coloco os alunos de IC a se confrontarem com problemas e encontrarem soluções. É divertido demais acompanhar os esforços e sucessos de alunos talentosos, construindo o conhecimento. Não tem melhor aprendizagem por descoberta do que a IC.
Mas é importante reconhecer as limitações das abordagens construtivistas, centradas na criança, aprendizagem ativa, aprendizagem por descoberta etc. A aprendizagem por descoberta abordagem centrada na criança impõe demandas emocionais, motivacionais e cognitivas que muitas crianças não conseguem suprir (Sweller, 2008). O que eu estou querendo explicitar é que uma abordagem muito dogmaticamente dependente da iniciativa do aluno, negligenciando as diferenças individuais, pode repercutir negativamente sobre as crianças provenientes de backgrounds de privação cultural, dificuldades cognitivas e características temperamentais desfarováveis à aprendizagem escolar. Nós testemunhamos isso no ensino remoto emergencial durante a pandemia. É reduzido o contingente de alunos que consegue suprir as demandas auto-regulatórias impostas pela educação à distância.
Se, por um lado, a abordagem construtivista têm suas limitações, por outro, a abordagem da Cognição Numérica também não é isenta de problemas. De uma maneira simplificada, a Cognição Numérica aposta na eficiência do processamento, no aperfeiçoamento de discrimnações não-simbólicas de numerosidade, na automatização e memorização de representações e procedimentos. Essas coisas são todas muito importantes. Mas não bastam. São necessárias mas não suficientes. Falo isso com base na nossa experiência de mais de quase duas décadas de pesquisa e clínica na área de cognição numérica.
O antagonismo entre as abordagens rivais é muitas vezes reduzidos a uma dicotomia entre "compreender ou memorizar". Essa dicotomia é falsa. Estimular unicamente a "compreensão" em detrimento da "memorização" não produz bons resultados. E, inversamente, estimular unicamente a "memorização" em detrimento da "compreensão" também não dá certo. Sinto que há a necessidade de conciliar essas duas abordagens. Transpondo isso para uma linguagem cognitiva, pode-se dizer que o conhecimento concentual e o conhecimento procedimental se retroalimentam (Rittle-Johnson et al., 2001).
Se isso é possível ou não, quem sabe? É uma tarefa, certamente, complexa e que demanda muito trabalho teórico, empírico e honestidade intelectual. Eu estou empenhado nisso. Uma das principais representantes do pensamento piagetiano em educação matemática é a Profa. Terezinha Nunes (Nunes & Bryant, 2015, 2022, Nunes et al., 2007). O curso será fortemente baseado no último livro de Nunes e Bryant (2022). Meu principal objetivo no curso será, justamente, apresentar a perspectiva piagetiana e indagar as possibilidades de integração numérica.
Eu acredito que essa integração é possível, apesar de trabalhosa. As divergências não são apenas epistemológicas e metodológicas, mas derivam de diferenças que, no seu extremo, são éticas e políticas (Simplicio & Haase, 2020). Ela exige trabalho metateórico de examinar as possibilidades de consiliação wilsoniana com S entre as correntes teórias, bem como empírico, de validação de instrumentos diagnósitcos e de intervenção. Meu otimismo se origina a partir de dois autores que têm me mostrado o cominho das pedras.
A Profa. Annemarie Fritz desenvolveu um modelo de ondas sobrepostas do desenvolvimento do conceito de número, o qual alia as virtudes de integrar as duas perspectivas e de ser empircamente validado (Balt et al., 2019, 2020, Freitas et al., 2022, Fritz et al., 2013). O modelo de ondas sobrepostas do desenvolvimento do conceito de número tem orientado nosso trabalho mais recente de pesquisa e clínica no LND-UFMG.
O outro autor que me eencorajou nessa empreitada se chama Olivier Houdé. Houdé conduziu diversos estudos de neuroimagem funcional investigando os mecanismos neurocognitivos subjacentes à resolução de tarefas piagetianas clássicas, tais como a conservação de quantidade (Houdé & Tzourio-Mazoyer, 2003, Poirel et al., 2012). Os estudos de Houdé apontam um caminho para investigar os mecanismos cognitivos subjacentes às tarefas piagetianas, possivelmente permitindo uma conversa entre a Cognição Numérica e a Psicologia da Educação Matemática.
O curso pretende apresentar a perspectiva piagetiana contemporânea sobre a aprendizagem da aritmética, refletindo sobre as diferenças entre essas duas correntes de pensamento, bem como sobre necessidade e possiblidade de integração teórica entre ambas. Ao todo, serão cinco aulas remotas síncronas às 19 horas. As aulas serão sobre: 1) Números e raciocínio (03/05/2022); 2) Contagem, número e problemas narrativos (10/05/2022); 3) Raciocínio aditivo (17/05/2022); 4) Raciocínio multiplicativo (24/05/2022); 5) Frações (31/05/2022). Nesse meio, tempo, gostaria de recomendar algumas leituras para quem quiser se embrenhar por essa senda.
P.S. Gostaria de agradecer à Elisa Cota pela inestimável ajuda na organização do curso.
REFERÊNCIAS
Ansari, D. (2015). No more math wars. An evidence-based, developmental perspective on math education. EdCan Network. September, 29, 2015 (https://www.edcan.ca/...//www.edcan.ca/articles/no-more- math-wars).
Arendt, H (1961). The crisis in education. In H. Arendt Between past and future. Six exercises in political thought (pp. 173-196). New York: Viking.
Balt, M., Ehlert, A., & Fritz, A. (2019). Assessment in inclusive mathematics education. Approaches to designing progress assessments for numeracy learning. In D. Kollosche, R. M. J. de Souza, M. Knigge, M. G. Penteado, & O. Skovsmose (Eds.), Inclusive mathematics education (pp. 197–216). New York: Springer.
Balt, M., Fritz, A., & Ehlert, A. (2020, June). Insights Into First Grade Students' Development of Conceptual Numerical Understanding as Drawn From Progression-Based Assessments. In Frontiers in Education (Vol. 5, p. 80). Frontiers.(https://www.frontiersin.org/.../10.../feduc.2020.00080/full)
Brasil (2017). Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: Ministério da Educação (http://basenacionalcomum.mec.gov.br).
Calderón-Tena, C. O., & Caterino, L. C. (2016). Mathematics learning development: The role of long-term retrieval. International Journal of Science and Mathematics Education, 14(7), 1377-1385.
Freitas, F. R., Herzog, M., Haase, V. G. & Fritz, A. (2022). Compreensão conceitual do número no diagnóstico e intervenção para as dificuldades de aprendizagem na aritmética, In V. G. Haase, S. Benedetti & H. A. T. Simplício (Orgs.) Pedagodia do Sucesso. Volume I: Diferenças individiuais, família, currículo e intervenções. Belo Horizonte: Ampla (no prelo).
Fritz, A., Ehlert, A. & Balzer, L. (2013). Development of mathematical concepts as basis for an elaborated mathematical understanding. South African Journal of Childhood Education, 3, 38-67. (http://www.scielo.org.za/scielo.php...)
Furedi, F. (2009). Wasted: why education isn't educating. London: Bloomsbury.
Gilmore, C., Göbel, S. M., & Inglis, M. (2018). An introduction to mathematical cognition. London: Routledge.
Haase, V. G. & Krinzinger, H. (2019). Adding all up: mathematical learning difficulties around the world. In A. Fritz, V. G. Haase & P. Räsänen (eds.) International handbook of mathematical learning disabilities: from the laboratory to the classroom (pp. 311). São Paulo: Springer.
Haase, V. G., Fritz, A. & Räsänen, P. (2020) Research on numerical cognition in Latin American countries (Investigación sobre cognición numérica en países latinoamericanos), Studies in Psychology, 41:2, 217-244, DOI: 10.1080/02109395.2020.1748843
Houdé, O., & Tzourio-Mazoyer, N. (2003). Neural foundations of logical and mathematical cognition. Nature Reviews Neuroscience, 4(6), 507-514. (http://acifonction.free.fr/.../05-02-11.../TEXTE3.pdf)
Klein, D. (2003). A brief history of American K-12 mathematics education in the 20th century. In J. M. Royer (ed.) Mathematical cognition (pp. 175-225). Greenwich, CT: Information Age Publishing. (https://www.researchgate.net/.../A-Brief-History-of...)
Klein, D. (2007). A quarter century of US 'math wars' and political partisanship Journal of the British Society for the History of Mathematics, 22, 22-33.
Marope, M., Griffin, P. & Gallagher, C. (2017). Transforming teaching, learning and assessment. A global paradigm shift. Paris: UNESCO. (http://www.ibe.unesco.org/.../transforming_teaching...)
Murray, C. (2008, August). Real education: Four simple truths for bringing America's schools back to reality. New York: Crown Forum.
Nunes, T., & Bryant, P. (2015). The development of quantitative reasoning. In L. S. Liben & U. Müller (Eds.), Handbook of child psychology and developmental science (7 ed., Vol. 2. Cognitive Process, pp. 715–764). Hoboken, NJ: Wiley.
Nunes, T. & Bryant, P. (2022). Using mathematics to understand the world. How culture promotes children's mathematics. London: Routledge.
Nunes, T., Bryant, P., Evans, d., Bell, D., Gardner, S., Gardner, A. & Carraher, J. (2007). The contribution of logical reasoninng to the learing of mathematics in primary school. British Journal of Developmental Psychology, 25, 147-166.
Poirel, N., Borst, G., Simon, G., Rossi, S., Cassotti, M., Pineau, A., & Houdé, O. (2012). Number conservation is related to children’s prefrontal inhibitory control: an fMRI study of a Piagetian task. PloS one, 7(7), e40802.
Rittle-Johnson B, Siegler RS and Alibali MW. 2001. Developing conceptual and procedural skill in mathematics: an interative process. J Educ Psychol 93: 346-362.
Sahlgren, G.. H. (2015). Real Finnish lessons. Thre true story of an education superpower. London: Centre for Policy Studies.
Simplício, H. A. T. & Haase, V G. (2020). Neuropsicologia escolar e interdisciplinaridade: filosofias educacionais e obstáculos epistemológicos. In R. P. Fonseca, A. G. Seabra & M. C. Miranda (eds.) Neuropsicologia escolar (pp. 97-119). São Paulo: Pearson
Sowell, T. (1993). Inside american education. The decline, the deception, the dogmas.New York: Free Press.
Sweller, J. (2008). Instructional implications of David C. Geary's evolutionary educational psychology. Educational Psychologist, 43(4), 214-216.

No comments:

Post a Comment