Friday, June 14, 2013

Raízes neurológicas da neuropsicologia

Hoje fiquei saudosista. Lembrei-me de quando, há 35 anos atrás, em julho de 1978, eu fiz um estágio de férias nas Enfermarias 14 e 15 da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Foi uma das experiências que mudou minha vida. (A outra foi conhecer a Maria Raquel Carvalho). Eu andava me sentindo intoxicado de literatura marxista e psicanalítica. Resolvi dar uma conferida na neurologia. Foi amor à primeira vista. Saquei que eu levava muito mais jeito para lidar com os pacientes neurológicos do que com os pacientes psiquiátricos. Mas, sobretudo, me identifiquei com as questões colocadas pela neurologia e neuropsicologia. 

Outras instituições e pessoas me influenciaram, mas foi lá na Santa Casa que eu me iniciei na neurologia e neuropsicologia. Foi lá que moldei meu perfil de interesses e o estilo profissional. Foi lá que aprendi a gostar das bases neurológicas e a neuropsicologia das dificuldades de aprendizagem escolar. Sinto-me privilegiado por estar trabalhando há 35 anos nesta área. 

Nâo vou mencionar outros professores e colegas com quem tive a oportunidade de trabalhar e aprender lá na Santa Casa. São muitos e tenho medo de esquecer alguém. Vou falar apenas do Prof. Celso Machado de Aquino, que na época já era professor emérito, mas ainda tinha uma  enorme influência intelectual. O Prof. Celso era uma figura imponente: alto, elegante, culto. Usava um avental branco, todo engomado e gigantesco. O avental dele ia até os tornozelos. Ele ia diariamente à Enfermaria e se ocupava de examinar os pacientes com um detalhe e um preciosismo fantásticos. Ele parecia conhecer todos os detalhes da semiologia neurológica francesa. Foi com ele que eu tomei conhecimento da obra de Dejerine  & Dejerine-Klumpke (1926). O Prof. Celso tinha um gosto enorme em ensinar a examinar. Fazi jus ao título.

Trabalhei nas Enfermarias 14 e 15 da Santa Casa de 1978 até o final de 1983. Quando fiz concurso para a residência médica no final de 1981, o Prof. Celso estava na banca. Ele me perguntou por que eu queria ser neurologista? Se o meu meu pai era médico no interior, por que eu não preferia ir trabalhar com ele? Perguntou-me se eu tinha algum problema com o meu pai...

Respondi-lhe que eu não tinha problema nenhum com meu pai. Que ao contrário, me dava muito bem com ele. Inclusive eu tinha uma bela experiência de sempre trabalhar junto com o Rubén Léo Haase no Hospital Tuparendi durante as minhas férias. Que a minha questão com a neurologia era o desafio intelectual. Eu achava que só a neurologia me proporcionaria trabalhar com as questões científicas e filosóficas que moviam minha imaginação. Que eu não conseguiria isto sendo médico no interior. Nâo sei de onde que o velho tirou esta pergunta. Será que ele achava que eu era um cara assim meio revoltado, meio conflituado?

Duas foram as  leituras mais importantes daquela época, o Barraquer-Bordas (1976) e o Luria (1981). O Barraquer é um livro de fisiopatologia das doenças neurológicas. Ensinou-me a compreender os sintomas neurológicos não apenas a partir da anatomia, como era feito classicamente no século XIX, mas a partir da fisiologia. Neurologia não é só uma questão de anatomia, mas também de função. Isto parece bobagem, mas era uma grande novidade na segunda metade do século XX. Foi apenas  quando alguns discipulos do Sherrington, como o Denny-Brown, começaram a meter fisiologia na neurologia é que a coisa começou realmente a andar.

O Luria foi minha porta para a neuropsicologia. Foi a primeira visão sistemática que eu obtive da neuropsicologia. Aprendi que as observações comportamentais podem ser um caminho muito interessante para compreender a estrutura e função do cérebro. Acabei me identificando totalmente com o negócio. Foi somente alguns anos mais tarde que eu tomei contato com a ciência cognitiva e com a psicometria, completando o tripé de conhecimentos que constituem a neuropsicologia. Tenho o maior carinho pelo Barraquer e pelo Luria. Adoro citá-los. Mas, evidentemente, de lá pra cá muita coisa aconteceu.

Lembrar destas coisas todas me faz refletir sobre como éramos caipiras naquela época. Como vivíamos isolados do mundo, tendo apenas uma vaga idéia de que como as coisas funcionavam no resto. Tipo assim aquele filme sobre o Juscelino: "Bela noite para voar". O Brasil era deliciosamente capira. Ainda somos. Mas não temos mais a mesma inocência.



Estas lembranças das origens neurológicas também enfatizam a natureza interdisciplinar da neuropsicologia (Haase et al., 2012). Hoje, a neuroposicologia só é o que é porque profissionais e pesquisadores de diversas áreas aprenderam a trabalhar juntos para construir uma nova área de conhecimento.

É importante salientar, entretanto, que a felicidade não consiste apenas em trabalhar durante anos e anos em uma área. A alegria maior é poder compartilhar os conhecimentos adquiridos.


Referências

Barraquer-Bordas, L. (1976). Neurología fundamental. Barcelona: Toray.

Haase, V. G., Salles, J. F., Miranda, M. C., Malloy-Diniz, L., Abreu, N., Argollo, N., Mansur, L. L., Parente, M. A. M. P., Fonseca, R. P., Mattos, P., Landeira-Fernandez, J., Caixeta, L. F., Nitrini, R., Caramelli, P., Teixeira Jr. A. L., Grassi-Oliveira, R., Christensen, C. H., Brandão, L., Corrêa da Silva Filho, H., da Silva, A. G. & Bueno, O. F. A. (2012). Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade brasileira de pesquisadores/clínicos em neuropsicologia. Neuropsicologia Latinoamericana, 4, 1-8 (http://neuropsicolatina.org/index.php/Neuropsicologia_Latinoamericana/article/view/125). 


Luria, A. R. (1981). Neuropsicologia fundamental. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos/São Paulo: EDUSP.

Dejérine, J. J. & Dejérine-Klumpke, A. (1926). Sémiologie des affections du système nerveux. Paris: Masson.