Thursday, June 06, 2013

O sistema motor como arqueologia do desenvolvimento cerebral


Há quem não concorde. São poucos, mas existem. Na minha opinião o tchan da neuropsicologia é a correlação anátomo-clinica ou estrutura-função (Haase et al., 2009, 2010). Apesar do charme dos testes, a atividade do neuropsicológo não se restringe ao uso do testes. Existe todo um arsenal de outros conhecimentos que são indispensáveis para o exercício profissional na área. Os testes neuropsicológicos constituem apenas atalhos, métodos padronizados de observação do comportamento, que nos permitem fazer observações clinicas mais precisas e válidas. Mas tem todo um lado neurológico da neuropsicologia (Cytowic, 1996). O seu lado neurológico consiste da epidemiologia clinica das doenças do sistema nervoso e dos princípios anátomo-funcionais que organizam o cérebro e permitem o estabelecimento de correlações anátomo-clínicas. Não tem como fazer neuropsicologia sem conhecer neurociência e neuropatologia (Pliszka, 2004).

O IX Curso de Férias de Neuropsicologia promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677) terá como tema central o lado neurológico da neuroposicologia do desenvolvimento. Serão abordados os aspectos neuropsicológicos das condições neurológicas mais comuns na infância e adolescência, tais como epilepsia, enxaqueca, transtornos de aprendizagem, deficiência intelectual e paralisia cerebral. Estas entidades constituem o feijão-com-arroz da atividade profissional de neurologistas e neuropsicológicos. O curso visa subsidiar profissionais de outras áreas com os conhecimentos neurológicos indispensáveis ao exercício da neuropsicologia coma população infanto-juvenil.

Neste pequeno ensaio vou discutir a relevância do exame do sistema motor para o neuropsicólogo. O método anátomo-clinico ocupa uma posição central no exame neurológico. Desde o início do século XIX os neurologistas se baseiam no fato de que existem relações sistemáticas entre determinadas alterações funcionais e a localização cerebral das lesões ou disfunções (Haase et al., 2008, 2010). O diagnóstico de localização ou topográfico fornece informações preciosas quanto à etiologia ou pelo menos nosologia de uma determinada condição mórbida do sistema nervoso.

E a localização em termos de nível de comprometimento do sistema motor é um dos caminhos mais eficazes para o diagnóstico neurológico. Como já foi dito, isto é sabido há muito tempo. Uma síntese da doutrina neurológica clássica da localização lesional e organização hierárquica do sistema motor foi a obra monumental da vida do neurologista John Hughlings Jackson (Catani, 2011).  Segundo Jackson, o sistema nervoso é organizados em níveis hierárquicos integrados. Cada nível de organização do sistema regula o nível imediatamente inferior, sendo por sua vez controlado pelo nível imediatamente superior. As relações entre os níveis são de inibição e excitação. Os sintomas neurológicos podem, portanto, assumir uma dupla natureza. Podem ser irritativos, quando causados por excesso de atividade neural tal como nas epilepsias, ou podem ser deficitários, quando seqüelares a lesões, tais como uma paralisa ou anestesia.

Mas as lesões não causam apenas sintomas deficitários. Os sintomas decorrentes de lesões podem ser negativos (deficitários) ou positivos (de liberação). Os sintomas de liberação decorrem da perda de controle em um determinado nível hierárquico em decorrência da lesão do nível imediatamente superior. Exemplos de sintomas de liberação são os automatismos, tais como a persistência de reflexos próprios do recém nascido em crianças com lesão cerebral perinatal. O trabalho clinico e teórico de Jackson legou aos neurologistas uma concepção do sistema nervoso como uma entidade maravilhosamente integrada, que é ao mesmo tempo modular e sistemicamente organizada. A herança prática de Jackson e de outros é o método de localização lesional que permite aos neurologistas restringir o campo de busca por uma etiologia a partir do diagnóstico topográfico.

O sistema motor, um dos mais conhecidos e acessíveis clinicamente, desempenha um papel primordial no diagnóstico neurológico e neuropsicológico. Segundo Martha Denckla (1997), o exame do sistema motor constitui uma espécie de arqueologia do sistema nervoso. Identificando o nível de comprometimento motor é possível inferir a fase do desenvolvimento cerebral em que um processo patológico se instalou. Os princípios de organização do sistema motor são válidos também para o cérebro em desenvolvimento, como veremos a seguir.



A fotografia que ilustra este ensaio mostra Ernst Moro (1874-1951), demonstrando a reação de endireitamento e a marcha reflexa em um recém nascido (Weirich & Hofmann, 2005). Um dos precursores da neuropediatria, Moro foi um pediatra de língua alemã, nascido em Graz e posteriormente professor em Heidelberg até que sua carreira fosse abortada pelo Nazismo. Seu nome ficou associado ao famoso reflexo de Moro ou de sobressalto. Mas a fotografia mostra como ele já conhecia toda uma gama de reações motoras próprias do recém nascido e sabia valorizar sua importância clinica.

A partir da década de 1960 com a introdução do tratamento intensivo e o aumento da sobrevida de bebês cada vez mais  prematuros, os neurologistas foram aprendendo a valorizar o desenvolvimento do sistema motor como um indicativo da maturidade fetal. Diversos pesquisadores, tais como Claudine Amiel-Tison (1968) descobriram que existe uma espécide de blueprint genética que regula o desenvolvimento do sistema motor. E que o ritmo de desenvolvimento é o mesmo independentemente do momento em que o bebê nasce. Assim, uma brincadeira que se faz freqüentemte é dizer que se o sorriso social no recém-nascido de termo ocorre após 21 dias de vida extra-uterina, então o sorriso social de um prematuro de 27 semanas deve ocorrer exatamente após 81 dias de vida. O exame neurológico, junto com outros parâmetros clínicos bem como métodos eletroencefalográficos é usado, portanto, para determinar a maturidade fetal.

Pesquisas mais recentes mostram que esta blueprint genética não vale apenas para o desenvolvimento motor, mas pode também ser observada em outras áreas tais como a linguagem. A percepção categorial é o fenômeno através do qual os humanos conseguem perceber quaisquer realizações fonéticas como pertencentes a uma determinada categoria fonêmica, independentemente da sua variabilidade dentro de um espectro de características psicoacústicas. Os recém-nascidos humanos exibem percepção categorial para praticamente todos os possíveis contrastes fonêmicos existentes nas mais diversas línguas. Esta habilidade é perdida até o final do primeiro ano de vida. No último trimestre do primeiro ano o bebê retém apenas a percepção categorial dos pares de fonemas que são contrastivos em sua língua materna. Um pesquisa muito interessante foi conduzida com bebês prematuros por Peña, Werker & Dehaene-Lambertz (2012). Estas autoras demonstraram que a prematuridade não acelera o desenvolvimento da seletividade na percepção categorial de fonemas. Ou seja, bebês prematuros não desenvolvem a seletividade na idade cronológica de 12 meses, mas na idade correspondente, corrigida para sua prematuridade.

Será que ocorre alguma coisa semelhante em relação à prontidão escolar dos prematuros? Será que é preciso dar um desconto para os prematuros e entender que eles podem ainda não estar prontos para enfrentar determinados currículos que são propostos na escola? Um caso clássico são as crianças que fazem aniversário no meio do ano e que entram no primeiro ano mais cedo do que os seus pares. Morrow e cols. (2012) demonstraram que estas crianças têm um risco relativo 1,3 vezes maior de serem diagnosticadas e receberem tratamento medicamentoso para TDAH. Este resultados pode ser interpretado como um sinal de alerta para pais e professores. Muitas dificuldades iniciais de aprendizagem escolar podem resultar de um descompasso entre as exigências curriculares e a maturidade da criança. Muitas vezes precisamos assegurar as famílias e professoras de que crianças que não dão conta de parar quietinhas na sala de aula ou de aprender a ler hoje, podem vir a fazê-lo sem maiores dificuldades daqui a seis meses.

Crianças que apresentam problemas de comportamento ou dificuldades de aprendizagem têm o direito de realizarem uma avaliação neurológica. Este direito precisa ser garantido pelo estado para os mais carentes e não pode lhes ser sonegado com base em argumentos ideológicos relacionados a uma suposta “medicalização do ensino”. Quase todas as crianças com transtornos do desenvolvimento, da aprendizagem e de comportamento apresentam transtornos motores. As dificuldades motoras são observadas na deficiência intelectual, autismo, TDAH, dislexia, discalculia etc. O exame neurológico de grandes grupos de crianças demonstra que as alterações motoras são preditivas de problemas de aprendizagem e comportamentais (Baatstra et al., 2003).

E o neurologista e o neuropsicólogo estão em condições de identificar estas dificuldades, desde que as conheçam. As dificuldades práxicas são indicativas de comprometimentos corticais, as alterações posturais e movimentos involuntários anormais indicam disfunções dos gânglios da base a incoordenação motora sugere déficits cerebelares (Tavano et al., 2010). As alterações motoras são tão importantes que Martha Denckla (2003) propôs utilizá-las de forma sistemática como critério clinico para o diagnóstico de TDAH. Na sua opinião, se a criança ou jovem não apresenta alterações motoras, diminui muito a probabilidade de que os seus sintomas sejam causados por um verdadeiro TDAH. E aumenta a probabilidade de que os sintomas de impulsividade, hiperatividade e desatenção sejam causados por outros fatores, tais como ansiedade ou inadequação das exigências parentais e escolares. Nesta perspectiva, nas palavras de Denckla, o exame do sistema motor constitui uma verdadeira arqueologia do desenvolvimento cerebral. Os déficits motores funcionam como marcadores da intensidade e extensão do agravo que causou os problemas da criança e, ao mesmo tempo, permitem localizar as disfunções na hierarquia sistêmica do desenvolvimento cerebral. As consequências clinicas e ducacionais disto estão longe de ser triviais.

Se você ficou interessado neste assunto, não perca o IX Curso de Férias de Neuropsicologia, promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG e que ocorrerá entre os dias 15 e 19 de julho de 2013 na FAFICH – UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677).



Referências

Amiel-Tison, C. (1968). Neurologicla evaluation of the maturity of newborn infants. Archives of Diseases of Childhood, 43, 89-93.

Batstra, L., Neeleman, J., Hadders-Algra, M. (2003). The neurology of learning and behavioral problems in pre-adolescent children. Acta Psychiatrica Scandinavica, 108, 92-100.

Catani, M. (2011). John Hughlings Jackson and the clinico-anatomical correlation method. Cortex, 47, 905-907.

Cytowic, R. (1996). The neurological side of neuropsychology. Cambridge, MA: MIT Press.

Denckla, M. B. (1997). The neurobehavioral examination in children. In T. E. Feinberg & M. J. Farah (Eds.) Behavioral neurology and neuropsychology (pp. 721-728). New York: McGraw-Hill.

Denckla, M. B. (2003). ADHD: topic update. Brain & Development, 25, 383-389.

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P., da Mata, F. G., Gonzaga, D. M., Silva, J. B. L, Géo, L. A. & Ferreira, F. O. (2008). Um sistema nervoso conceitual para o diagnóstico neuropsicológico. Contextos Clinicos, 1, 125-138.

Haase, V. G., Medeiros, D. G., Pinheiro-Chagas, P. & Lana-Peixoto, M. A. (2010). A "Conceptual Nervous System" for multiple sclerosis". Psychology & Neuroscience, 3, 167-181.


Morrow, R. L., Garland, E. J., Wright, J. M., Maclure, M., Taylor, S. & Dormuth, C. R . (2012). Influence of relative age on diagnosis and treatment of attention-deficit/hyperactivity disorders in children. Canadian Medical Association Journal, 184, 755-762.

Pliszka, S. R. (2004). Neurociência para o clinico de saúde mental. Porto Alegre: ARTMED.

Tavano, A., Gagliardi, C., Martelli, S. & Borgatti, R. (2010). Neurological soft signs feature a double dissociation within the language system in Williams syndrome. Neuropsychologia, 48, 3298-3304.


Weirich, A. & Hoffmann, G. F. (2005). Ernst Moro (1874-1951) - A great pediatric career started at the rise of university-based pediatric research but was curtailed in the shadows of Nazi laws. European Journal of Pediatrics, 164, 599-606.