Friday, October 14, 2016

O NEUROPSICÓLOGO DEVE SER UM HUMANISTA? ENTRE A CILA DA CIÊNCIA E A CARIBDIS DA ARTE



A resposta a esta pergunta é certamente positiva e tem implicações importantes para o atendimento neuropsicológico, mas precisa ser muito bem qualificada. Existem vários tipos de Humanismo, nem todos pertinentes e muitos até mesmo perniciosos à empreitada neuropsicológica.

Vou começar examinando as concepções de Humanismo que são menos importantes ao contexto no qual a pergunta deve ser situada. O Humanismo surgiu na Renascença como uma reação ao pensamento teocrático medieval. As pessoas se deram conta de que não precisavam de Deus para pensar por elas. Os humanos poderiam e podem pensar por conta própria, obviamente assumindo a responsabilidade por isso.

Para compreender a importância do Humanismo Renascentista basta comparar a nossa Civilização Ocidental com o Islã. O povo do Islâ ainda vive sob uma teocracia e não tem liberdade para pensar por conta própria sem incorrer no risco de heresia. O Humanismo Renascentista transformou o Ocidente e culminou no Iluminismo. O movimento iluminista erigiu a razão como critério último pelo qual o pensamento dos homens deve ser avaliado.

Não demorou muito tempo para que o Humanismo Renascentista-Iluminista passasse a ser severamente criticado. Paradoxalmente, foi o Humanismo que favoreceu o desenvolvimento vertiginoso da ciência e da técnica. Ao mesmo tempo, a ciência e técnica não trouxeram soluções definitivas para as angústias existenciais humanas. A ciência e a técnica elevaram o bem-estar humano a um patamar inaudito. Mas não tiveram o condão de amainar os sofrimentos mais profundos, existenciais, psicológicos.

Essa toada anti-humanista começou com Nietzsche, passou por Heidegger e Sartre e desembocou nos filósofos da Nova Esquerda, os estruturalistas, pós-estruturalistas, pós-modernistas e, atualmente, pós-humanos. A constatação básica é que a ciência não resolve os nossos problemas existenciais. Precisamos encontrar as soluções por conta própria e arcar com as responsabilidades. A ciência pode, até mesmo, ser do mal, uma vez que promove a desigualdade e relações assimétricas de poder.

Gradualmente, a crítica ao humanismo foi incorporada à luta política, à guerra ideológica de inspiração marxista. O humanismo passou a ser identificado como um mecanismo de dominação de classe, gênero etc. O ideal dos anti-humanistas contemporâneos é lutar para que o Mundo se adeque ao seu desejo.

Uma segunda vertente de crítica ao Humanismo-Iluminismo vêm da própria Psicologia científica experimental. Os estudos de Simon, Newell, Tversky e Kahneman e outros mostraram claramente que nem sempre os humanos resolvem seus problemas e tomam suas decisões da maneira mais racional possível. A racionalidade é mais a exceção do que a regra. A racionalidade é limitada, uma commodity em short supply. Grande parte dos processos cognitivos humanos consiste de heurísticas, de estratégias evolutivamente estáveis que quebravam o galho dos nossos ancestrais no ambiente em que a espécie evoluiu, que são aplicadas automaticamente, mas que nem sempre são adaptativas no contexto cultural contemporâneo.

Caimos  e fomos fundo no oba-oba da racionalidade e da ciência. Mas, ao mesmo tempo fomos gradualmente aprendendo a desconfiar delas. Ao mesmo tempo, não podemos mais viver sem elas. Ou alguém quer fazer a roda da História girar para trás? O búsilis é conciliar nossa racionalidade/cientificidade com as demandas emocionais evoluídas na espécie.

Cave at: Estas considerações iniciais sobre o Humanismo foram tiradas da minha própria cabeça. São sujeitas às distorções propiciadas pelas falhas de memória e vieses da ignorância. Eu não encontrei nenhum texto que analisasse as diversas acepções de Humanismos de uma maneira acessível e rápida. Que não me fizesse perder muito tempo para articular minhas próprias idéias.

Vamos então ao tipo de Humanismo que mais nos interessa. Há algumas décadas, quando comecei a dar aulas de Psicologia na  UFMG, um dentre tantos fenômenos que chamou minha atenção foram os dizeres que as calouras ostentavam nas suas camisetas de alunas de graduação em Psicologia. O povo escrevia assim nas suas camisetas: “Sou psicólogo, nada do que é humano me é indiferente”.

Esta frase é do dramaturgo e poeta romano Terêncio (195/185 aC – 159 aC). Além dessa frase, não sei nada mais sobre o tal Terêncio que tivesse chamado minha atenção. A frase é extremamente perigosa. Da minha parte, não subscrevo tudo que é humano. Tem muita coisa que é humana e que é uma porcaria ou que é do mal. Então, o tipo de Humanismo que subscrevo não é uma adoração acrítica do ser humano como tal.





A frase to Terência precisa ser nuançada porque existem também várias concepções do que significa ser humano. Tem a concepção rousseauniana, segundo a qual o homem é bom por natureza, sendo a sociedade que o corrompe. Tem também a concepção darwiniana, segundo a qual o homem não é nem bom nem mau. A natureza humana é caracterizada por adaptações evolutivamente estáveis que permitem tanto a cooperação quanto a competição, tanto o bem quanto o mal. Então, não dá pra subscrever “tudo que é humano” porque muita coisa que é humana é moralmente reprovável. Mas a própria competição não é um mal em si, mas uma força motriz da evolução natural, sexual e cultural. As coisas são muito mais complicadas.

O que as garotas procuram exprimir com essa frase é que elas não são indiferentes ao sofrimento humano. Que escolheram essa profissão de Psicologia porque empatizam com o sofrimento alheio e querem ajudar as pessoas a sair dos buracos em que se metem. Nesta acepção, o Humanismo pode ser compreendido como capacidade de mentalização, de empatia, de teoria da mente. E é precisamente esse o significado mais importante do mandado de que o neuropsicólogo seja um humanista. O neuropsicólogo precisa empatizar com o sofrimento e ajudar seus clientes a sair do buraco. Deve ser, portanto, um humanista.

Quais são os desafios colocados a este tipo de Humanismo? Aqui ressurge a tensão entre arte e ciência. A arte representada pela empatia e a ciência pela tecnologia. A Psicologia e a Neuropsicologia são também ciências. A Psicologia procura investigar empiricamente o comportamento e os estados subjetivos. A Neuropsicologia está interessada em investigar a relação entre comportamentos e estados subjetivos e o funcionamento do cérebro.

O aspecto artístico da Neuropsicologia pode ser traceado à definição hipocrática de Medicina como “arte de curar os males e aliviar o sofrimento”. Note-se que a definição não faz qualquer menção à ciência. E, além do mais, o termo “males” pode ter conotações morais ou mágicas, sendo ortogonal ao conceito contemporâneo de doença como um fenômeno natural, cientificamente analisável.

O conceito de Medicina como arte antecede em milênios o conceito de Medicina como ciência. A influência da ciência na Medicina começou a partir da Renascença, com a Anatomia de Vesalius e a Fisiologia de Harvey. Mas foi com a Patologia Celular de Virchow, no final do Século XIX que a Medicina se consolidou como ciência. A científização da Psiquiatria é bem posterior. A classificação científica das doenças mentais foi desenvolvida por Kraepelin no final do Século XIX, atingindo sua versão mais acabada com a Psicopatologia fenomenológica de Jaspers apenas na Década de 1940.

A Psicologia nem existia antes da segunda metade do Século XIX. A origem da Psicologia científica é sinalizada por Wundt em 1875 e James em 1890. É duvidoso afirmar que a Psicanálise freudiana tenha alguma coisa a ver, ainda que remotamente, com ciência. Está mais para arte do que para qualquer outra coisa.

Em anos recentes a cientifização da Medicina e Psicologia recrudesceu com o movimento da assistência à saúde baseada em evidências (ASBE). A idéia da ASBE é que os profissionais de saúde vem fundamentar suas prescrições diagnósticos e terapêuticas nas melhores evidências científicas disponíveis. Ou seja, a fundamentação científica tornou-se um mandado ético. Exercer a arte dissociada da ciência não é mais moralmente aceitável.

A investigação sobre a eficácia de diferentes formas de psicoterapia e suas indicações, bem como o surgimento de novas correntes de tratamento, tais como a análise aplicada do comportamento e a terapia cognitivo comportamental, ilustram esse movimento em direção à ciência na Psicologia aplicada.

As ciências da saúde, incluindo a Neuropsicologia, vivem uma tensão permanente e busca de equilíbrio entre arte e ciência. Por um lado, a fundamentação empírico-científica transformou-se em madado ético da assistência à saúde. Por outro lado, a tecnologização crescente da  saúde, o acúmulo vertiginoso de conhecimento e a proliferação de espacialidades contribuem para desumanizar a assistência. Desumanizar significa aqui despir as interações clinicas de empatia e calor humano, tornando-as ineficientes e insatisfatórias, tanto para profissionais quanto para clientes.

A desumanização da Psicologia é claramente testemunhada em certas concepções e aplicações superficiais da análise aplicada do comportamento e da terapia cognitivo-comportamental. Eu já senti vergonha alheia de alguns terapeutas cognitivo-comportamentais famosos que apresentam vídeos dos seus atendimentos em congressos. Percebe-se claramente que o cliente está constrangido, pouco à vontade. Que o terapeuta não se liga no cliente. Que a comunicação entre ambos não rola. O cliente parece privado de voz enquanto o terapeuta  recita a ladainha do seu manual. Isso é tanto mais paradoxal quanto resultados de algumas meta-análises sobre eficácia de terapia demonstram que o componente relacional é o ingrediente mais importante do sucesso terapêutico! Parece que esses caras pensam que tratamento significa engenharia do comportamento.

Os neuropsicólogos têm uma fama consagrada de “positivistas” da Psicologia, em função do seu compromisso com a ciência. Antes do advento dos métodos de neuroimagem funcional, a Neuropsicológia era um dos poucos métodos disponíveis para investigar de forma não-invasiva as relações entre cérebro e comportamento em humanos. A Neuropsicologia estava no forefront do progresso científico em ciência cognitiva. A situação mudou radicalmente com o surgimento da neuroimagem funcional e outras técnicas mais sofisticadas ainda, tais como estimulação transcraniana. O papel heurístico da Neuropsicologia se reduziu acentuadamente.

Ao mesmo tempo, cresceu a dimensão aplicada da Neuropsicologia. O mandado de usar o conhecimento científico com o intuito de aliviar o sofrimento humano. Isso impõe aos neuropsicólogos o desenvolvimento e cultivo de habilidades interpessoais, de empatia e de reconstrução fenomenológica dos estados mentais dos seus clientes. É nesse sentido que o neuropsicológo precisa ser um humanista.

O grande desafio é definir quais são essas habilidades éticas e empáticas que caracterizam a qualidade relacional de um atendimento clinico e como desenvolvê-las e cultivá-las. Tanto a empatia quanto a ética são sujeitas a uma variabilidade interindividual cuja origem é, em grande parte, genética.Mas tanto a empatia quanto a ética podem ser aprendidas e precisam ser cultivadas.

Uma das coisas que mais me impressiona são os psiquiatras autistas que conheço. Sim, existe isso. Tem um monte de psiquiatra autista por aí. E alguns muito bem sucedidos, adorados por seus clientes. O grande mistério é que como essas pessoas desenvolveram as habilidades clinicas que lhes permitem atender seus clientes com êxito. A existência de psiquiatras autistas sugere que, apesar de suas limitações empáticas, alguns profissionais conseguem desenvolver as habilidades clinicas necessárias.

Será que o atendimento clinico pode ser comparado a um grande teatro? No qual basta cada um desempenhar o papel que lhe cabe, sem considerar a autenticidade dos sentimentos envolvidos? Não acredito que isso seja viável. O atendimento clinico somente será satisfatório quando a empatia for genuina. Psiquiatras autistas conseguem, portanto, desenvolver empatia. A empatia está ao alcance de quase todos, inclusive dos autistas. Com método e perseverança. Acho que só os psicopatas são privados de empatia.

Por um lado, tem um monte de psicoterapeutas e neuropsicólogos por aí, que são uns verdadeiros “engenheirões” do comportamento. Profissionais que executam seu métier de forma superficial e mecânica. Reduzindo à psicoterapia aos exercícios de manual ou a avaliação neuropsicológica à psicometria. Por outro lado tem correntes de pensamento existenciais-humanistas ou psicanalíticas que rejeitam a relevância da ciência para o processo clinico.

É, portanto, entre a Cila da ciência e a Caribdis da arte que o neuropsicólogo precisa exercer seu métier. O método para a aquisição de habilidades científicas é bem conhecido. Precisa sentar o e estudar. Desenvolver habilidades empáticas é um processo mais complexo. Parece que o caminho mais viável é o atendimento supervisionado.

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