A resposta a esta pergunta é certamente positiva e
tem implicações importantes para o atendimento neuropsicológico, mas precisa
ser muito bem qualificada. Existem vários tipos de Humanismo, nem todos
pertinentes e muitos até mesmo perniciosos à empreitada neuropsicológica.
Vou começar examinando as concepções de Humanismo
que são menos importantes ao contexto no qual a pergunta deve ser situada. O Humanismo
surgiu na Renascença como uma reação ao pensamento teocrático medieval. As
pessoas se deram conta de que não precisavam de Deus para pensar por elas. Os
humanos poderiam e podem pensar por conta própria, obviamente assumindo a
responsabilidade por isso.
Para compreender a importância do Humanismo Renascentista
basta comparar a nossa Civilização Ocidental com o Islã. O povo do Islâ ainda
vive sob uma teocracia e não tem liberdade para pensar por conta própria sem incorrer
no risco de heresia. O Humanismo Renascentista transformou o Ocidente e
culminou no Iluminismo. O movimento iluminista erigiu a razão como critério
último pelo qual o pensamento dos homens deve ser avaliado.
Não demorou muito tempo para que o Humanismo
Renascentista-Iluminista passasse a ser severamente criticado. Paradoxalmente,
foi o Humanismo que favoreceu o desenvolvimento vertiginoso da ciência e da
técnica. Ao mesmo tempo, a ciência e técnica não trouxeram soluções definitivas
para as angústias existenciais humanas. A ciência e a técnica elevaram o
bem-estar humano a um patamar inaudito. Mas não tiveram o condão de amainar os
sofrimentos mais profundos, existenciais, psicológicos.
Essa toada anti-humanista começou com Nietzsche,
passou por Heidegger e Sartre e desembocou nos filósofos da Nova Esquerda, os
estruturalistas, pós-estruturalistas, pós-modernistas e, atualmente,
pós-humanos. A constatação básica é que a ciência não resolve os nossos problemas
existenciais. Precisamos encontrar as soluções por conta própria e arcar com as
responsabilidades. A ciência pode, até mesmo, ser do mal, uma vez que promove a
desigualdade e relações assimétricas de poder.
Gradualmente, a crítica ao humanismo foi
incorporada à luta política, à guerra ideológica de inspiração marxista. O
humanismo passou a ser identificado como um mecanismo de dominação de classe,
gênero etc. O ideal dos anti-humanistas contemporâneos é lutar para que o Mundo
se adeque ao seu desejo.
Uma segunda vertente de crítica ao
Humanismo-Iluminismo vêm da própria Psicologia científica experimental. Os
estudos de Simon, Newell, Tversky e Kahneman e outros mostraram claramente que
nem sempre os humanos resolvem seus problemas e tomam suas decisões da maneira
mais racional possível. A racionalidade é mais a exceção do que a regra. A
racionalidade é limitada, uma commodity em short supply. Grande parte dos
processos cognitivos humanos consiste de heurísticas, de estratégias
evolutivamente estáveis que quebravam o galho dos nossos ancestrais no ambiente
em que a espécie evoluiu, que são aplicadas automaticamente, mas que nem sempre
são adaptativas no contexto cultural contemporâneo.
Caimos e
fomos fundo no oba-oba da racionalidade e da ciência. Mas, ao mesmo tempo fomos
gradualmente aprendendo a desconfiar delas. Ao mesmo tempo, não podemos mais
viver sem elas. Ou alguém quer fazer a roda da História girar para trás? O búsilis
é conciliar nossa racionalidade/cientificidade com as demandas emocionais evoluídas
na espécie.
Cave at: Estas considerações iniciais sobre o
Humanismo foram tiradas da minha própria cabeça. São sujeitas às distorções
propiciadas pelas falhas de memória e vieses da ignorância. Eu não encontrei
nenhum texto que analisasse as diversas acepções de Humanismos de uma maneira
acessível e rápida. Que não me fizesse perder muito tempo para articular minhas
próprias idéias.
Vamos então ao tipo de Humanismo que mais nos
interessa. Há algumas décadas, quando comecei a dar aulas de Psicologia na UFMG, um dentre tantos fenômenos que chamou
minha atenção foram os dizeres que as calouras ostentavam nas suas camisetas de
alunas de graduação em Psicologia. O povo escrevia assim nas suas camisetas: “Sou
psicólogo, nada do que é humano me é indiferente”.
Esta frase é do dramaturgo e poeta romano Terêncio
(195/185 aC – 159 aC). Além dessa frase, não sei nada mais sobre o tal Terêncio
que tivesse chamado minha atenção. A frase é extremamente perigosa. Da minha
parte, não subscrevo tudo que é humano. Tem muita coisa que é humana e que é uma
porcaria ou que é do mal. Então, o tipo de Humanismo que subscrevo não é uma
adoração acrítica do ser humano como tal.
A frase to Terência precisa ser nuançada porque
existem também várias concepções do que significa ser humano. Tem a concepção
rousseauniana, segundo a qual o homem é bom por natureza, sendo a sociedade que
o corrompe. Tem também a concepção darwiniana, segundo a qual o homem não é nem
bom nem mau. A natureza humana é caracterizada por adaptações evolutivamente
estáveis que permitem tanto a cooperação quanto a competição, tanto o bem
quanto o mal. Então, não dá pra subscrever “tudo que é humano” porque muita
coisa que é humana é moralmente reprovável. Mas a própria competição não é um
mal em si, mas uma força motriz da evolução natural, sexual e cultural. As
coisas são muito mais complicadas.
O que as garotas procuram exprimir com essa frase é
que elas não são indiferentes ao sofrimento humano. Que escolheram essa
profissão de Psicologia porque empatizam com o sofrimento alheio e querem ajudar
as pessoas a sair dos buracos em que se metem. Nesta acepção, o Humanismo pode
ser compreendido como capacidade de mentalização, de empatia, de teoria da
mente. E é precisamente esse o significado mais importante do mandado de que o
neuropsicólogo seja um humanista. O neuropsicólogo precisa empatizar com o
sofrimento e ajudar seus clientes a sair do buraco. Deve ser, portanto, um
humanista.
Quais são os desafios colocados a este tipo de
Humanismo? Aqui ressurge a tensão entre arte e ciência. A arte representada
pela empatia e a ciência pela tecnologia. A Psicologia e a Neuropsicologia são também
ciências. A Psicologia procura investigar empiricamente o comportamento e os
estados subjetivos. A Neuropsicologia está interessada em investigar a relação
entre comportamentos e estados subjetivos e o funcionamento do cérebro.
O aspecto artístico da Neuropsicologia pode ser
traceado à definição hipocrática de Medicina como “arte de curar os males e
aliviar o sofrimento”. Note-se que a definição não faz qualquer menção à
ciência. E, além do mais, o termo “males” pode ter conotações morais ou
mágicas, sendo ortogonal ao conceito contemporâneo de doença como um fenômeno
natural, cientificamente analisável.
O conceito de Medicina como arte antecede em
milênios o conceito de Medicina como ciência. A influência da ciência na Medicina
começou a partir da Renascença, com a Anatomia de Vesalius e a Fisiologia de Harvey.
Mas foi com a Patologia Celular de Virchow, no final do Século XIX que a Medicina
se consolidou como ciência. A científização da Psiquiatria é bem posterior. A
classificação científica das doenças mentais foi desenvolvida por Kraepelin no
final do Século XIX, atingindo sua versão mais acabada com a Psicopatologia
fenomenológica de Jaspers apenas na Década de 1940.
A Psicologia nem existia antes da segunda metade do
Século XIX. A origem da Psicologia científica é sinalizada por Wundt em 1875 e
James em 1890. É duvidoso afirmar que a Psicanálise freudiana tenha alguma
coisa a ver, ainda que remotamente, com ciência. Está mais para arte do que
para qualquer outra coisa.
Em anos recentes a cientifização da Medicina e Psicologia
recrudesceu com o movimento da assistência à saúde baseada em evidências
(ASBE). A idéia da ASBE é que os profissionais de saúde vem fundamentar suas
prescrições diagnósticos e terapêuticas nas melhores evidências científicas disponíveis.
Ou seja, a fundamentação científica tornou-se um mandado ético. Exercer a arte
dissociada da ciência não é mais moralmente aceitável.
A investigação sobre a eficácia de diferentes
formas de psicoterapia e suas indicações, bem como o surgimento de novas
correntes de tratamento, tais como a análise aplicada do comportamento e a terapia
cognitivo comportamental, ilustram esse movimento em direção à ciência na
Psicologia aplicada.
As ciências da saúde, incluindo a Neuropsicologia,
vivem uma tensão permanente e busca de equilíbrio entre arte e ciência. Por um
lado, a fundamentação empírico-científica transformou-se em madado ético da
assistência à saúde. Por outro lado, a tecnologização crescente da saúde, o acúmulo vertiginoso de conhecimento e
a proliferação de espacialidades contribuem para desumanizar a assistência.
Desumanizar significa aqui despir as interações clinicas de empatia e calor
humano, tornando-as ineficientes e insatisfatórias, tanto para profissionais quanto
para clientes.
A desumanização da Psicologia é claramente
testemunhada em certas concepções e aplicações superficiais da análise aplicada
do comportamento e da terapia cognitivo-comportamental. Eu já senti vergonha alheia
de alguns terapeutas cognitivo-comportamentais famosos que apresentam vídeos dos
seus atendimentos em congressos. Percebe-se claramente que o cliente está
constrangido, pouco à vontade. Que o terapeuta não se liga no cliente. Que a
comunicação entre ambos não rola. O cliente parece privado de voz enquanto o
terapeuta recita a ladainha do seu
manual. Isso é tanto mais paradoxal quanto resultados de algumas meta-análises
sobre eficácia de terapia demonstram que o componente relacional é o
ingrediente mais importante do sucesso terapêutico! Parece que esses caras
pensam que tratamento significa engenharia do comportamento.
Os neuropsicólogos têm uma fama consagrada de “positivistas”
da Psicologia, em função do seu compromisso com a ciência. Antes do advento dos
métodos de neuroimagem funcional, a Neuropsicológia era um dos poucos métodos disponíveis
para investigar de forma não-invasiva as relações entre cérebro e comportamento
em humanos. A Neuropsicologia estava no forefront do progresso científico em
ciência cognitiva. A situação mudou radicalmente com o surgimento da
neuroimagem funcional e outras técnicas mais sofisticadas ainda, tais como
estimulação transcraniana. O papel heurístico da Neuropsicologia se reduziu
acentuadamente.
Ao mesmo tempo, cresceu a dimensão aplicada da
Neuropsicologia. O mandado de usar o conhecimento científico com o intuito de
aliviar o sofrimento humano. Isso impõe aos neuropsicólogos o desenvolvimento e
cultivo de habilidades interpessoais, de empatia e de reconstrução fenomenológica
dos estados mentais dos seus clientes. É nesse sentido que o neuropsicológo
precisa ser um humanista.
O grande desafio é definir quais são essas
habilidades éticas e empáticas que caracterizam a qualidade relacional de um
atendimento clinico e como desenvolvê-las e cultivá-las. Tanto a empatia quanto
a ética são sujeitas a uma variabilidade interindividual cuja origem é, em
grande parte, genética.Mas tanto a empatia quanto a ética podem ser aprendidas
e precisam ser cultivadas.
Uma das coisas que mais me impressiona são os psiquiatras
autistas que conheço. Sim, existe isso. Tem um monte de psiquiatra autista por
aí. E alguns muito bem sucedidos, adorados por seus clientes. O grande mistério
é que como essas pessoas desenvolveram as habilidades clinicas que lhes
permitem atender seus clientes com êxito. A existência de psiquiatras autistas
sugere que, apesar de suas limitações empáticas, alguns profissionais conseguem
desenvolver as habilidades clinicas necessárias.
Será que o atendimento clinico pode ser comparado a
um grande teatro? No qual basta cada um desempenhar o papel que lhe cabe, sem
considerar a autenticidade dos sentimentos envolvidos? Não acredito que isso
seja viável. O atendimento clinico somente será satisfatório quando a empatia
for genuina. Psiquiatras autistas conseguem, portanto, desenvolver empatia. A
empatia está ao alcance de quase todos, inclusive dos autistas. Com método e perseverança.
Acho que só os psicopatas são privados de empatia.
Por um lado, tem um monte de psicoterapeutas e neuropsicólogos
por aí, que são uns verdadeiros “engenheirões” do comportamento. Profissionais
que executam seu métier de forma superficial e mecânica. Reduzindo à
psicoterapia aos exercícios de manual ou a avaliação neuropsicológica à
psicometria. Por outro lado tem correntes de pensamento existenciais-humanistas
ou psicanalíticas que rejeitam a relevância da ciência para o processo clinico.
É, portanto, entre a Cila da ciência e a Caribdis
da arte que o neuropsicólogo precisa exercer seu métier. O método para a
aquisição de habilidades científicas é bem conhecido. Precisa sentar o e
estudar. Desenvolver habilidades empáticas é um processo mais complexo. Parece
que o caminho mais viável é o atendimento supervisionado.
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