Sunday, September 10, 2017

COMO OS GENES INFLUENCIAM A APRENDIZAGEM DA LECTOESCRITA E DA MATEMÁTICA

As diversas formas de aprendizagem se baseiam em modificações da conectividade sináptica em diversas regiões do cérebro, as quais são moduladas epigeneticamente (Kandel, 1991). P. ex., no condicionamento de medo, a amígdala é o lócus principal de modificações sinápticas, mas o córtex sensorial tem funções discriminantes, o hipocampo está envolvido no condicionamento contextual e o córtex orbitofrontal na extinção e reversão de contingências (LeDoux, 1998). De um modo em geral, o cerebelo e a amígdala são importantes para o condicionamento pavloviano, os circuitos córtico-estriatais para o condicionamento operante e os circuitos cortiço-hipocampais para a aprendizagem conceitual (Shallice e Cooper, 2011).

Ainda não está claro como os avanços na neurobiologia da aprendizagem e o sua regulação genética podem ser transladados para o contexto escolar e para as dificuldades de aprendizagem escolar. A herdabilidade do desempenho escolar é alta, variando entre 50% a 60% (Asbury e Plomin, 2013). A herdabilidade da inteligência e desempenho escolar variam conforme a estrutura sócio-demográfica da população, sendo maiores em amostras maishomogêneas e menores em amostras menos homogêneas (Turkheimer et al., 2003).

A genética molecular está sendo usada para dissecar os mecanismos envolvidos na aprendizagem escolar e nos seus transtornos (Brandler e Paracchini, 2014, Kere, 2014, Paracchini et al., 2007, 2016). Cerca de uma dezena de genes já foram identificados e seu envolvimento confirmado em casos de dislexia do desenvolvimento. Muitos desses genes estgão envolvido na regulação de processos relacionados à plasticidade sináptica e aprencizagem, tais como brotamento de espinhas dendríticas, migração neuronal e lateralização hemisférica. Esses achados mais recentes se coadunam com observações anteriores de Galaburda e cols. (2006), demonstrando alterações na migração neuronal e organizaçãocitoarquitetônica cortical em casos de dislexia do desenvolvimento.

Comprometimentos de alguns genes implicados na dislexia foram também observados em casos de discalculia comórbida com dislexia (Ludwig et al., 2013, Stefansson et al., 2014).  Tais genes poderiam constituir a chave para a compreensão de mecanismos compartilhados entre dislexia e discalculia. Não se sabe, porém, se esses genes estão implicados na discalculia apenas em casos de comorbidade. De qualquer forma, os resultados sugerem que a investigação das bases genéticas da dislexia pode servir de modelo para a pesquisa sobre discalculia.

Diversos autores sugeriram modelos de como disfunções epigenéticas na regulação da plasticidade sinátpica poderiam estar envolvidos nos transtornos de aprendizagem (Anderson, 2010, Dehaene e Cohen, 2007, Mitchell, 2011). A lectoescrita e a aritmética são artefatos culturals de invenção recente, com apenas alguns milhares de existência. Tempo esse que provavelmente não foi suficiente para selecionar mecanismos cerebrais que permitam a aprendizagem intuitiva da leitura, escrita e aritmética.

Além de serem artefatos culturais, a lectoescrita e a aritmética são habilidades bem complexas. A aritmética, p. ex., compreende formas de conhecimento conceitual (propriedades das oepraçõpes: associatividade, comutatividade etc.), procedimental (contagem, decomposição e algoritmos) e factual (tabuada de multiplicação). A aquisição dessas habilidades exige anos de esforço. Há a necessidade de integrar a atividade de múltiplas áreas corticais e subcorticais em redes criadas de novo, a partir da experiência ontogenética e não da herança filogenética (Anderson, 2010, Dehaene e Cohen, 2007).

No caso da aprendizagem da aritmética, os estudos de neuroimagem funcional mostram que as fases iniciais do processo ativam áreas do córtex prefrontal dorsolateral (memória de trabalho) e sulco intraparietal (magnitude numérica), sugerindo processamento conceitual e controlado. À medida que a aprendizagem procede, o foco de ativação se desloca para o giro angular esquerdo no caso da tabuada de multiplicação. Durante o processo de memorização dos fatos e de forma passageira são registradas ativações do hipocampo esquerdo (Menon, 2016). A ativação hipocampal só ocorre em crianças e é compatível com o papel atribuído a essa estrutura na consolidação da memória de longo prazo (vide Figura 1).

Figura 1 – Aprendizagem dos fatgos aritméticos. Na aprendizagem da aritmética são ativadas inicialmente áreas relacionadas com o processamento conceitual e controlado na memória de trabalho (A: corte prefrontal dorsolateral), processamento de magnitude (B: sulco intraparietal). Ao longo do processo são observadas ativações temporárias do hipocampo (C ) em crianças. Finalmente, a partir do momento em que os fatos aritméticos são memorizados, o foco de ativação se desloca para o giro angular esquerdo (baseado em  Menon, 2016).


Os resultados dos estudos de neuroimagem funcional são, portanto, compatíveis com a hipótese de que a aprendizagem escolar se baseia na capacidade da criança estabelecer conexões novas entre diversas áreas corticais e subcorticais. Conexões essas que não são geneticamente prerogramadas, mas dependem do esforço com o intuito de automatizar o funcionamento das novas conexões, criadas na memória de trabalho, consolidadas pelo hipocampo e instanciadas por múltiplas áreas corticais e subcorticais.

Segundo essa perspectiva, os transtornos de aprendizagem tais como a dislexia e discalculia ocorrem quando os mecaniamos de regulação epigenética da plasticidade neural e o indivíduo não consegue estabelecer ou automatizar as novas conexões que se fazem necessárias à aprendizagem escolar.  Mitchell (2011) propôs um modelo de como isso poderia ocorrer (vide Figura 2).


Figura 2 – Modelo diagramático dos transtornos da conectividade cortical nos transtornos de aprendizagem escolar. a) Redes corticais em uma criança pequena mostrando ampla responsividade a diversos tipos de estímulo com baixa especificidade. A conectividade funcional é sinalizada pelas linhas. Em adultos (b) as áreas corticais se segregam em duas redes distintas (azul e amarelo), através de reforçamento seletivo das sinapses de longa distância e poda das sinapses de curta distância. c) Uma dificuldade para formar os padrões necessários de conectividade entre diversas áreas corticais pode explicar transtornos tais como agnosia, dislexia e discalculia. d) Uma hiperconectividade causa por déficits na poda sináptica pode explicar ativações cruzadas entre áreas, tais como observados na sinestesia ou déficits inibitórios como no autismo (reproduzido de Mitchell, 2011).

Ainda estamos bem longe de uma compreensão sistêmica da neurobiologia das dificuldades de aprendizagem. Mas as evidências estão se acumulando e se encaixando. Os transtornos de aprendizaegm escolar podem ser concebidos como síndromes de desconexão causadas por déficits nos mecanismos epigenéticos que permitem a formação das novas redes neurais necessárias para implementar algumas habilidades culturalmente adquiridas, principalmente a lectoescrita e a aritmética.


Referências

Anderson, M. L. (2010). Neural reuse: A fundamental organizational principle of the brain. Behavioral and Brain Sciences, 33, 245–313

Asbury, K., & Plomin, R. (2013). G is for genes. The impact of genetics on educational achievement.

Brandler, W. M., & Paracchini, S. (2014). The genetic relationship between handedness and neurodevelopmental disorders. Trends in Molecular Medicine, 20, 83-90. doi: 10.1016/j.molmed.2013.10.008.

Dehaene, S. & Cohen, L. (2007). Cultural recycling of cortical maps. Neuron, 56, 384-398.

Galaburda, A. M., LoTurco, J., Ramus, F., Fitch, R. H., & Rosen, G. D. (2006). From genes to behavior in developmental dyslexia. Nature Neuroscience, 9. 1213-1217.

Kandel, E. R. (1991). Cellular mechanisms of learning and the biological basis of individuality. In E. R. Kandel, J. H. Schwartz, & T. M. Jessel (eds.) Principles of neural science ( 3rd. ed., pp. 1009-1031). Norwalk, CT: Appleton & Lange.

Kere, J. (2014). The molecular genetics and neurobiology of developmental dyslexia as model of a complex phenotype. Biochemical and Biophysical Research Communications, 453, 236-243.

LeDoux, J. (1998). The emotional brain. The mysterious underpinnings of emotional life. New York: Simon & Schuster.

Ludwig, K. U., Sämann, P., Alexander, M., Becker, J., Bruder, J., Moll, K., Spieler, D., Czisch, M., Warnke, A.,, Docherty, S. J., Davis, O. S. P., Plomin, R., Nöthen, M. M., Landerl, K., Müller-Myhsok, B., Hoffmann, P., Schumacher, J., Schulter-Körne, G., & Czamara, D. (2013). A common variant of Myosin-18B contributes do mathematical abilities in children with dyslexia and intraparietal sulcus variability in adults. Translational Psychiatry, 3, e229 (doi:10.1038/tp.2012.148).

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Mitchell, K. J. (2011). Curioser and curioser: genetic disorders of cortical specializaiton. Current Opinion in Genetics & Development, 21, 271-277.

Paracchini, S., Diaz, R., & Stein, J. (2016). Advances in dyslexia genetics - New insights into the role of brain asymmetries. Advances in Genetics, 96, 53-97, doi: 10.1016/bs.adgen.2016.08.003.

Paracchini, S., Scerri, T., & Monaco, A. P. (2007). The genetic lexicon of dyslexia. Annual Review of Genomics and Human Genetics, 8, 57-79. Review.

Shallice, T. & Cooper, R. P. (2011). The organisation of mind. Oxford: Oxford University Press

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Turkheimer, E., Haley, A., Waldron, M., D'Onofrio, B., & Gottesman, I. I. (2003). Socioeconomic
status modifies heritability of IQ in young children. Psychological Science, 14, 623-628.

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