Friday, March 08, 2019

A NEUROPSICOLOGIA CONTRIBUI PARA A EDUCAÇÃO? Conhecimento, instrução, autoridade e RTI

A neuropsicologia escolar pode contribuir para a educação de diversas maneiras. A primeira delas é direta. Quando um jovem é encaminhado por causa de dificuldades de comportamento e/ou aprendizagem na escola (uma não solta a mão da outra), o neuropsicológico procura identificar fatores de risco em, ao menos, três níveis: indivíduo, família, escola. 
A identificação de fatores de risco associados à própria escola é um modo indireto através do qual a neuropsicologia pode contribuir para a melhoria da educação. A experiência como neuropsicólogo indica que, freqüentemente, os professores têm dificuldades para manejar comportamentos desafiadores ou para auxiliar de modo mais efetivo na promoção da motivação para o estudo e desempenho escolar.
Uma grande parte das dificuldades dos professores em contribuir para a educação de crianças não se origina de escassez de recursos materiais ou humanos. Há dados indicativos de que o aporte financeiro se relaciona de forma complexa com o desempenho escolar, não havendo, necessariamente, uma relação linear entre mais recursos materiais e melhor desempenho. 
O mesmo ocorre em relação ao salário e formação dos professores. Ouvi falar de uma capital  brasileira na qual o número de mestres e doutores, bem como o salário dos professores, é muito superior ao observado no estado. Entretanto, as crianças que estudam nas escolas municipais não têm um desempenho escolar superior ao daquelas que estudam nas escolas estaduais.

Por que isso? A resposta, obviamente e mais uma vez, deve ser bem complexa. Mas eu suspeito que uma grande parte do problema diz respeito à filosofia educacional adotada. Não adianta muito qualificar mais os professores, se essa "qualificação" se baseia em pressupostos conducentes a uma mentalidade anti-científica, avessa ao conhecimento e às evidências empíricas.

As filosofias educacionais contemporâneas se engalfinham há décadas em conflitos que remetem, em última análise a divergências epistemológicas, éticas e, até mesmo, políticas. De um lado, prevalece uma filosofia romântica da educação, caudatária de Rousseu, Dewey, Vygotsky, Piaget e - por que não? - Paulo Freire. Os partidários dessa corrrente gostam, muitas vezes de se descrever como "progressistas", atribuindo uma dimensão ética, um valor, ao seu posicionamento. Isso, em detrimento de correntes alternativas que são denominadas de forma derrogatória como "tradiconalistas" ou "positivistas". Eu prefiro pensar que uma alternativa à mentalidade atual seria uma pedagogia mais científica. Ou ao menos cientificamente mais informada, uma vez que a pedagogia é também uma arte. 

Os pontos principais de discórdia dizem respeito ao papel do conhecimento, da instrução e da autoridade. Os românticos colocam-se objetivos educacionais muito ambiciosos e amplos. Em termos do classicismo-romantismo alemão, o objetivo último da educação seria Bildung. Ou seja, uma formação mais completa do ser humano, que além de lhe propiciar uma formação vocacional, possibilitasse sobretudo a formação mais ampla do caráter, da cidadania, do espírito crítico e da cultura pessoal e coletiva. 

Não há nada de errado com esse objetivo. Esse deve ser o objetivo último da educação mesmo. Só que esse objetivo não é exclusividade da escola, mas também e, sobretudo, da família. A formação do caráter, dos valores, é prerrogativa da esfera familiar. A escola, ou seja o estado, deve se intrometer o mínimo possível, e não o máximo possível, na construção de valores. Apenas nas ditaduras os valores são impostos pelo estado. Nas sociedades orgânicas, os valores brotam do seio da família e precisam ser respeitados na sua diversidade.

O problema não diz respeito tanto ao objetivo da educação, mas quanto ao método. A escola romântica de pedagogia critica o modelo "bancário" de transmissão de conhecimento, conforme Paulo Freire. Segundo essa perspectiva a educação não pode ser reduzida à "mera" transmissão de conhecimento. A educação deve ter um caráter libertário, transformador da realidade, promotor da consciência crítica e da iniciativa do indivíduo e não da sua opressão. Transmitir conhecimento significaria, portanto, oprimir o indivíduo, reduzir sua iniciativa e criatividade pessoal. Privá-lo da oportunidade de se desenvolver conforme a própria natureza (os seus daimones), aprendendo pela experiência. 

O problema é que essa perspectiva anti-conhecimento, anti-ciência, é desafiada diretamente por evidências científicas contrárias e muito poderosas. Os resultados de diversas linhas de pesquisa da psicologia indicam, ao contrário, que o conhecimento é um pré-requisito indispensável à aprendizagem e à criatividade. O vocabulário é um dos principais pré-requisitos para a compreensão leitora, assim como os fatos aritméticos são pré-requisitos para formas mais complexas de matemática. Nos termos piagetianos, a aprendizagem consiste em assimilar nova informação à memória de longo prazo. Só que essa nova informação só pode ser assimilada se for simultaneamente acomodada. Ou seja, se houver algum grau de redundância que permita à informação nova integrar-se e modificar o estoque dinâmico disponível de conhecimento. (Vou parar por aqui. Esse assunto é fascinante e merece um post próprio.)

Os românticos também têm aversão à instrução. Piaget disse que nunca se deve ensinar a uma criança, o que ela pode aprender por conta própria. É bem certo que a aprendizagem por descoberta e colaboração estimula a criatividade. Mas também é certo que a instrução não suprime a criatividade. Ao contrário. A instrução é mais rápida e eficiente, poupando recursos escassos de processamento na memória de trabalha para atividades cognitivas mais complexas. Contextos muito informais de aprendizagem, pouco estruturados, tendem a sobrecarregar a memória de trabalho, prejudicando a aprendizagem. O indivíduo gasta tempo e energia tentando formular o problema. Não há necessidade que as crianças reconstruam toda a evolução cultural pela descoberta experiencial. A maioria dos conhecimentos pode ser transmitida de forma rápida e eficiente pela instrução. Não há necessidade de reinventar a roda a cada geração. Como a instrução é rápida e eficiente, como o conhecimento é pré-requisito à criatividade e a formas mais complexas ainda de conhecimento, fica clara a vantagem da instrução. Adicionalmente, a aprendizagem por desccoberta/colaboração social pode estar acima do alcance das crianças pobres e daquelas com transtornos do desenvolvimento, as quais têm menor acesso a conhecimento. 

Em terceiro lugar, precisa ser discutido o papel da autoridade. Segundo a concepção romântica, as relações hierárquicas, "tradicionais" entre professores e alunos são opressoras. A hierarquia precisaria então ser diluída, fazendo desaparecer os limites entre o professor "que sabe" e o aluno "que não sabe". Na prática, essa mentalidade se associa a efeitos colaterais perversos, representados pelo aumento de comportamentos de risco e comportamentos agressivos e antisociais entre os alunos. 

A negação da autoridade acarreta um estilo disciplinar displicente ou inconsistente. Largada por si mesmo e sem experiências conseqüências consistentes, a criança fica desorientada e pode ter dificuldade para identificar o que é certo e o que é errado.  As conseqüências inconsistentes são as mais perversas. Se as crianças não aprendem a distinguir entre os comportamentos que conduzem sistematicamente ao reforço ou sistematicamente à punição, torna-se muito difícil se orientar na vida. 

O que freqüentemente se observa é uma mistura incongruente entre um discurso libertário e uma prática disciplinar altamente punitiva. Quando o adulto não aprende a exercer a autoridade de forma discricionária, atribuindo conseqüencias sistemáticas e ponderadas ao comportamento da criança, torna-se muito difícil manejar os comportamentos desafiadores que eventualmente surgem. E eles surgem. É da natureza humana desafiar a autoridade. A tentação de se comportar mal é grande. E, nesses casos, o adulto não sabe manejar os comportamentos inadequados a não ser recorrendo à punição. O discurso oficial é, então libertário ou anti-punição, mas a prática disciplinar é punitiva. Isso porque o adulto não aprendeu a fazer um uso prudente, discricionário, moderado da sua autoridade. Isso para não falar do fato de que a punição funciona apenas no curto prazo. Por outro lado, a disciplina contribui para desmoralizar a autoridade que já era pouca. 

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o objetivo da psicologia behaviorista não é robotizar as crianças, fazendo-as se comportarem como autômatos temerosos de eventuais choques elétricos. Ao contrário, a maioria dos behavioristas favorece um estilo disciplinar prudente e brando, baseado principalmente no incentivo e, muito eventualmente, em punições moderadas. O segredo é prestar atenção no bom comportamento dos alunos, ignorando os comportamentos inadequados, dentro de certos limites. Quando o comportamento inadequado torna-se o centro da atenção e é "punido", ele na verdade é reforçado e aumenta de freqüência. O adulto e a criança tornam-se prisioneiros de um círculo vicioso. Se a criança não recebe atenção quando se comporta bem, mas é punida quando se comporta mal, o comportamento inadequado apenas tende a aumentar de freqüência. 

Ao contrário do que muitos imaginam, é o manejo comportal da disciplina que é verdadeiramente libertário. Através de conseqüencias consistentes, caracterizadas por incentivo ao bom comportamento e punição branda dos comportamentos inadequados, a criança aprende a distinguir melhor as associações entre os seus comportamentos e suas conseqüências. Coloca-se então em uma melhor posição para optar pelo tipo de comportamento que prefere emitir, conforme o tipo de conseqüência.

Pelo pouco que foi discutido acima é possível depreender que existe uma verdadeiro abismo entre as duas concepções da educação. Seria esse abismo intransponível? Tem sido. É difícil entender as razões pelas quais o romantismo educacional é tão renitente. Já se comentou que, de tempos em tempos, o romantismo educacional se recicla e resurge como a fênix com um rótulo novo. Isso acontece toda vez que as evidências empíricas contrárias se acumulam.

Até pouco tempo eu nunca havia ouvido falar em um estudo chamado Project Follow Through, que foi implementado nos EUA entre 1968 e 1977. O objetivo desse estudo foi promover a aprendizagem da leitura e da aritmética em crianças do jardim da infância e das três séries iniciais, oriundas de minorias étnicas e estratos sócio-econômico-educacionais menos privilegiados. Ao todo, participaram do projeto 200.000 crianças de 180 universidades. A implementação do projeto nas escolas era orientada por  diversas instituições de ensino e pesquisa afiliadas Os resultados foram avassaladores: Os métodos com um componente instrucional são muito superiores. À mesma conclusão chegou um importante estudo que sintetizou os resultados de mais de 800 meta-análises de ensaios controlados.

É realmente muito difícil compreender que, face ao acúmulo de evidências favorecendo uma abordagem instrucional, promotora da transmissão do conhecimento e da disciplina consistente, implementada no contexto de pesquisas com avaliação quantitativa de resultados, outras abordagens continuem desempenhando um papel hegemônico na educação. E não apenas no Brasil. Nem nisso aí somos originais. A atual Base Nacional Curricular Comum (BNCC) consiste apenas em uma implementação do modelo curricular baseado em competências desenvolvido e propagado pela UNESCO.

Ao invés de propor que as crianças aprendam a fazer as contas de mais, de menos e de vezes, por exemplo, o modelo de competências define objetivos descritos de forma tão abstrata que se torna muito difícil mensurar sua consecução ou, até mesmo, implementação. Não surpreende que as crianças não aprendam.

Para se ter uma idéia do nível de abstração em que os objetivos podem ser descritos é interessante citar os níveis de competência descritos pelo PISA. O nível 4 de competência, atingido por apenas 3% dos jovens brasileiros, é assim descrito:

"No nível 4, os estudantes conseguem trabalhar de maneira eficaz com modelos explícitos em situações concretas complexas, que podem envolver restrições ou exigir formulação de hipóteses. São capazes de selecionar e integrar diferentes representações, inclusive simbólicas, relacionando-as diretamente a aspectos de situações da vida real. Os estudantes situados nesse nível conseguem utilizar suas habilidades pouco variadas e raciocinar com alguma perspicácia, em contextos diretos. São capazes de construir e comunicar explicações e argumentos com base em suas interpretações, argumentos e ações".

Alguém sabe como operacionalizar isso do ponto de vista de estratégias de ensino? Eu não sei. Não deixa de ser curioso que a descrição dos níveis de competência do PISA muito se assemelha à descrição da gravidade de deficiêcia intelectual no DSM. Parece que eles falando mais sobre inteligência do que sobre matemática.

Eu só consigo desconfiar dos motivos subjacentes a essas concepções. Mas tenho certeza de que, enquanto, não houver uma mudança profunda de mentalidade, os consultórios neuropsicológicos continuarão lotados de crianças encaminhadas por dificuldades de comportamento e de aprendizagem. Mas apenas as crianças de classe média. As crianças mais pobres continuarão ao Deus dará.

Essa situação é muito infeliz. Por dois motivos. Em primeiro lugar, não é possível fazer uma avaliacão neuropsicológica em toda e qualquer criança com dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem na escola. Simplesmente não há recursos para isso. Nem materiais, nem humanos, nem temporais. Em segundo lugar, métodos foram desenvolvidos que permitiria detectar e resolver as dificuldades de comportamento na própria escola, pelos professores. Sem recorrer à ajuda de especialistas da área de saúde. A maioria das crianças com dificuldades de comportamento e de aprendizagem não tem problemas neuropsicológicos. São apenas pobres, filhos de famiíias disfuncionais e vítimas de um sistema educacional falido.

Os problemas de aprendizagem (e de comportamento deles derivados) poderiam ser solucionados na própria escola, a partir de uma filosofia de resposta à intervenção (RTI). A RTI se baseia no pressuposto de que as dificuldades de aprendizagem devem ser reconhecidas e tratadas o mais precocemente possível. De preferência no jardim da infância. Crianças sob risco de apresentarem dificuldades de aprendizagem da leitura e da matemática podem ser reconhecidas precocemente através de triagem para habilidades de processamento fonologico e numérico. Essas crianças recebem então uma série progressivamente mais intensas de intervenções conforme sua resposta seja positiva ou não. Se, eventualmente, a criança permanecer com dificuldades após uma série de intervenções bem desenhadas e implementadas, pode-se suspeitar então que a natureza do problema seja compatível com um diagnóstico de dislexia ou discalculia.


É óbvio que a RTI não é uma panacéia. Ela exige recursos vultosos e formação científica de recursos humanos. Uma outra dificuldade diz respeito à qualidade das intervenções e à aderência dos alunos aos programa. Adicionalmente, se mal aplicadda, a RTI pode retardar o acesso de alunos com problemas neuropsicológicos a serviços médicos e neuropsicológicos especializados. Entretanto, a maioria das crianças com dificuldades não tem problemas neurológicos. Haveria, então, a necessidade de desenvolver critérios, o sinais de alerta, que permitissem diferenciar aquelas crianças que precisam algum tipo de encaminhamento a serviços especializados, daquelas cujos problemas poderiam ser manejados no âmbito escolar. Mas a implementação desse tipo de programa exigiria uma mudança radical de mentalidade, além de investimentos maciços. Por enquanto a demanda por serviços neuropsicológica vai permanecer alta, com viés de elevação.

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