No famoso handbook de psicologia da criança DE Carmichael, editado por Mussen, Piaget apresentou sua teoria para para o público norte-americano. Uma das suas frases também fez fama:
"Cada vez que alguém ensina prematuramente a uma criança algo que ela poderia ter descoberto por si mesma, essa criança é impedida de inventar e, conseqüentemente, de compreender completamente" (Piaget, 1970, p. 715).
As idéias de Piaget têm um impacto gigantesco na pedagogia contemporânea e são muitas vezes interpretadas de forma radical, excluindo qualquer forma de abordagem instrucional ao ensino. A aprendizagem por descoberta (no ensino fundamental) e a aprendizagem baseada em resolução de problemas (PBL, na universidade) têm despertado um interesse enorme, a ponto de terem se transformado em verdadeiras lendas urbanas (DeBruyckere et al., 2015). Há notícias, por exemplo, que a Secretaria da Educação do Reino Unido pune severamente os professores e escolas que ousam instruir seus alunos (Christodoulou, 2014).
Mas, afinal, a aprendizagem por descoberta e a PBL funcionam? Elas são melhores do que os métodos instrucionais tradicionais? Vou tentar responder a essas questões dando umas dicas de literatura que podem auxiliar a desenvolver uma perspectiva mais equilibrada sobre esse assunto. A maioria das referências que citarei está disponível gratuitamente no Google Scholar a partir dos seus respectivos links.
Qual é a resposta então para a questão sobre o que funciona melhor: a aprendizagem por descoberta ou a instrução? A resposta depende do quê, para quê, para quem e por quê?
O que? A aprendizagem por descoberta é excelente para aduirir habilidades biologicamene primárias, como a linguagem oral, que fazem parte do equipamento cognitivo padrão da espécie e podem ser aprendidas intuitivamente (Geary et al., 2015). Por outro lado, as habilidades secundárias como a lectoescrita e a aritmética, que são artefatos culturais, exigem instrução.
Para que? De fato, há evidências de que a aprendizagem por descoberta estimula a criatividade (Bonawitz et al., 2011). Por outro lado, a instrução é mais rápida e eficiente (Klahr & Nigam, 2004).
Para quem? Crianças com transtornos do neurodesenvolvimento parecem se beneficiar muito pouco da aprendizagem por descoberta (Kroesbergen et al., 2003). Por outro lado, a instrução pode ter um efeito negativo sobre a aprendizagem de indivíduos com maior conhecimento e habilidade, o chamado expert reversal effect (Kalyuga, 2007, Sweller et al., 2011).
Por que? A teoria da sobrecarga cognitiva desenvolvida por John Sweller (Paas et al., 2004, Sweller et al., 2011) explica o porquê. A memória de trabalho é o locus da aprendizagem. A aprendizagem depende de os problemas serem representados na memória de trabalho e se iniciar um processo de varredura por uma solução previamente aprendida e armazenada memória de trabalho. Se uma solução previamente aprendida é encontrada, o problema está resolvido. Por outro lado, se não existe uma solução previamente adquirida, uma nova precisa ser inventada.
É aí que a porca torce o rabo. Descobrir soluções para os problemas com os quais o indivíduo não tem experiência prévia não é tarefa trivial, constituindo a própria essência do fator g ou inteligência geral. Descobrir soluções para problemas com os quais o indivíduo não tem experiência prévia demanda recursos de processamento na memória de trabalho, os quais são notoriamente escassos. O processamento controlado ou executivo na memória de trabalho tem capacidade limitada, consome recursos de processamento atencional, exige esforço mental e motivação, é muito sujeito a erro, podendo ser aversivo.
Se o problema é pouco estruturado e se o aprendiz não recebe instruções claras sobre os meios para resolução do problema estão explicitados no seu enunciado, o único recurso é a tentativa e erro. O aprendiz precisa explorar aleatoriamente o espaço de problema tentando descobrir relações entre meios e fins que levem à sua resolução. Isso consome os recursos escassos de processamento na memória de trabalho e pode ser ineficiente e frustrante, principalmente para as crianças que têm alguma dificuldade cognitiva ou que vêm de lares menos favorecidos.
De forma aparentemente paradoxal, a instrução tem um efeito negativo sobre aprendizes com maior nível de habilidade e conhecimento. Mas o paradoxo é mais aparente do que real. A resposta é simples. Quando o aprendiz dispõe de conhecimento previamente adquirido, sob a forma de esquemas, a instrução pode entrar em contradição com os mesmos. Isso gera conflito cognitivo e necessidade de consumir recursos de processamento na memória de trabalho, prejudicando a aprendizagem.
Então, a resposta à pergunta sobre a eficácia relativa da aprendizagem por descoberta e instrução é complexa. Depende do quê, para quê e para quem. Assim sendo quem casa monogamicamente com apenas uma dessas abordagens está cultivando uma lenda urbana (DeBruyckere et al., 2015) e abrindo mão do seu bom senso e da sua efetividade como professor.
REFERÊNCIAS
Bonawitz, E., Shafto, P., Gweon, H., Goodman, N. D., Spelke, E., & Schulz, L. (2011). The double-edged sword of pedagogy: instruction limits spontaneous exploration and discovery. Cognition, 120, 322-330.
Christodoulou, D. (2014). Seven myths about education. London: Routledge / The Curriculum Centre.
DeBruyckere, P., Kirschner, P. A. & Hulshof, C. D. (2015). You learn better if you discover things for yourself rather than having them explained to you by others. In P. DeBruyckere, P. A. Kirschner & C. D. Hulshof Urban myths about learning and education (pp. 48-53). Amsterdam: Elsevier.
Geary, D. C., & Berch, D. B. (2015). Evolutionary Approaches to Understanding Children's Academic Achievement. Emerging Trends in the Social and Behavioral Sciences: An Interdisciplinary, Searchable, and Linkable Resource, 1-10.
Kalyuga, S. (2007). Expertise Reversal Effect and Its Implications for Learner-Tailored Instruction. Educational Psychology Review, 19(4), 509-539.
Klahr, D., & Nigam, M. (2004). The equivalence of learning paths in early science instruction: Effects of direct instruction and discovery learning. Psychological science, 15(10), 661-667.
Kroesbergen, E. H., & Van Luit, J. E. (2003). Mathematics interventions for children with special educational needs: A meta-analysis. Remedial and special education, 24(2), 97-114.
Paas, F., Renkl, A., & Sweller, J. (2004). Cognitive Load Theory: Instructional Implications of the Interaction between Information Structures and Cognitive Architecture. Instructional Science, 32, 1-8.
Piaget, J. (1970). Piaget’s theory. In P. Mussen (Ed.), Carmichael’s manual of child psychology (Vol. 1, pp. 703-772). New York: John Wiley & Sons.
Sweller, J., Ayres, P., & Kalyuga, S. (2011). Cognitve load theory. New York: Springer Ver menos
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