Ontem compartilhei no FB um mini-conto do Alexandre Archer, contando a história de uma moça que estudou pedagogia. Lá pelas tantas, nessa história, acabou sobrando para o Paulo Freire.
Algumas pessoas não gostaram da crítica feita ao Patrono do Analfabetismo Funcional Brasileiro. E essas pessoas reagiram vigorosamente. Grosso modo, as reações podem ser classificadas em três categorias principais: a) Argumento da autoridade. "Você sabia que o Paulo Freire é o pesquisador brasileiro mais influente e considerado no mundo inteiro?"; b) Argumento ad hominem contra o mensageiro: "O que você leu do Paulo Freire para poder falar?"; c) Nenhum argumento, apenas uma série de adjetivos depreciativos sobre o suposto mau-gosto, bigotrismo, fascismo etc. de quem escreveu e de quem compartilhou.
Vou fazer uma confissão: Sou virgem de Paulo Freire. Nunca consegui ler o cara. Confesso que já tentei várias vezes, mas não tenho estômago. O cara escreve muito mal, passa o tempo todo fazendo jogos de palavras, diz uma coisa uma hora e outra coisa outra hora. A sensação que tenho é de que, ou o conteúdo é muito profundo para que eu possa apreender, ou é muito raso e não há nada para apreender. Tudo parece uma grande viagem na maionese retórica esquerdista.
Uma coisa que me incomoda no Paulo Freire é a ignorância psicológica. Ele, simplesmente, não conseguia acompanhar aquilo que estava acontecendo na psicologia à sua época. Considerem a famosa metáfora da "educação bancária". É uma das idéias mais rasas que eu já vi no mundo. Não tem fundamento psicológico nenhum.
Suponhamos que você mostre um clip de papel para duas pessoas. Uma que já conhece o objeto e outra ainda não o conhece. Suponhamos que você faça um teste de "criatividade" com essas duas pessoas, pedindo que mencionem o maior número de usos possíveis para o objeto. Provavelmente, o ignorante em clips de papel vai gerar o maior número de possíveis usos. Nem por isso será mais "criativo" do que o sujeito que já conhecia o uso do clip e, portanto, considerava a tarefa trivial. O ignorante não é mais "criativo", é apenas mais ignorante e, portanto, mais deslumbrado com o objeto desconhecido.
Voltemos ao Paulo Freire. Não tenho a menor dúvida de que a metáfora da "educação bancária" é uma criação da cachola dele. Se estivesse copiando alguém, usaria a metáfora do processamento de informação. A "Pedagogia do oprimido" foi escrita em 1968. Àquela época, o cognitivismo já estava fervendo na psicologia há mais de 20 anos.
O famoso modelo modal da memória de Atkinson e Shiffrin também foi formulado na Década de 1960. Basicamente, o modelo da "educação bancária" pode ser traduzido ao modelo mais simples e elegante de processamento de informação: o conhecimento pode ser reduzido à informação que é transmitida de um emissor a um receptor a outro e armazenada (mais ou menos fielmente) em algum tipo de memória.
O modelo de processamento de informação teve e continua tendo uma influência grande em psicologia. (Além de ser uma maneira muito mais elegante e politicamente não-comprometida de ilustrar o processo de transmissão de conhecimento.) Só que o modelo de processamento de informação também é tosco. Ele só teve a influência que teve e tem por causa do seu valor heurístico, por causa das hipóteses que permitiu gerar e testar.
As hipóteses geradas e testadas já haviam conduzido àquela época a um modelo bem diferente da natureza da cognição humana. A memória é altamente construtiva e reconstrutiva. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Isso já era conhecido desde a Década de 1930 através dos trabalhos de Frederic Bartlett. A memória, simplesmente, não pode ser eqüiparada a uma ficha em um arquivo ou a notas de dólar, que são depositadas e sacadas.
Não é assim que o conhecimento funciona. Já se sabia desde a Década de 1930 que a memória é um sistema altamente dinâmico e não um arquivo estático. Quem bebeu na mesma água do Bartlett foi o Piaget. Segundo Piaget, o mecanismo do desenvolvimento consiste em assimilar informação do ambiente ao sistema cognitivo e acomodar a estrutura do sistema cognitivo à nova informação assimilada. Ou seja, o conhecimento é um sistema altamente dinâmico, que se reconfigura à medida que novas notas de dólar vão sendo "depositadas" ou "sacadas". Já que as metáforas são imprescindíveis, o sistema de conhecimento poderia ser melhor comparado a um computador ou rede neural do que a um cofre.
Quando Paulo Freire escreveu a "Pedagogia do oprimido", Piaget já era um senhor de avantajados 72 anos e tinha uma obra consolidada. Fiz um "Control F" na "Pedagogia do oprimido". A resposta para "Piaget" foi "Não encontrado". Encontrei, entretanto, doze ocorrências de "Marx", quatro de "Mao" e três de "Guevara". Devem ter sido grandes psicólogos, esse trio formado por Marx, Mao e Guevara. Qual é o ponto? O ponto é que o livro de Paulo Freire era sobre política e não sobre psicologia ou pedagogia. De psicologia o Paulo Freire entendia tanto quanto o Olavo de Carvalho. (Acabou sobrando para o Olavo. Mas também, por que ele se mete a falar sobre psicologia sem entender nada do assunto?)
Alguém poderia dizer: "Ah, mas naquela época era diferente, a informação não era tão acessível. Os pensadores não tinham tudo ao alcance de um click". Não era assim não. Basta ler autores clássicos como Charles Darwin ou William James. A leitura desses autores é surpreendente no sentido que cada um deles revelava um conhecimento muito grande daquilo que outros pesquisadores da sua época e de épocas anteriores faziam e fizeram ao longo do tempo. A ciência sempre foi um rede altamente conectada e dinâmica. Apenas o turn-over era um pouco mais lento. Mas os pesquisadores estavam todos ligados uns nos outros.
Vou dar dois exemplos: a) O segundo capítulo dos "Principles of Psychology" é sobre o cérebro. Você quer ler um sumário da neuropsicologia do Século XIX? Leia esse capítulo; b) Leia a "Expressão das emoções nos animais e no homem" e veja as belíssimas fotos dos experimentos de Duchenne sobre a estimulação elétrica dos músculos faciais na mímica de emoções. Um dos maiores mistérios da ciência é o motivo pelo qual Darwin nunca citou Mendel. O Mendel teria resolvido o problema dele da transmissão dos traços hereditários de uma geração para outro. As informações são contraditórias. Já li que o artigo de Mendel teria sido, mas já li também que não teria sido, encontrando no meio da papelada do Darwin. Só Deus sabe. Parece que o Darwin era avesso à matemática...
Os pensadores e cientistas sembre estiveram ligados uns aos outros. Essa rede se chama alta cultura. Não transmitir conhecimento para as crianças pobres é barrá-las desse baile. Paulo Freire estava conectado em uma outra rede, cujos nós centrais eram Marx, Mao e Guevara. Não é à toa que seu conhecimento psicológico fosse muito rudimentar. Não é à toa que sua produção "intelectual" possa ser considerada mais ideológica do que política. Não é à toa que os cânones da Matrix Freireana não possam ser problematizados. Em educação, tudo pode e dever ser problematizado. Menos os cânones da Matrix. Ai de quem ousar...
Aí vem o argumento da alínea b): "Quem é você para criticar o Paulo Freire, o pesquisador brasileiro mais influente? O que você leu do Paulo Freire?". Felizmente não li nada. Como me atrevo, então a falar? A minha estratégia foi a seguinte. Como eu não agüentava ler o Paulo Freire, pedi a um aluno que fizesse um resumo pra mim. Esse aluno, que não deve ser nomeado sob pena de se transformar em alvo de ira, escreveu um capítulo, o qual será publicado brevemente. O que eu sei de Freire está ali.
O que me autoriza, entretanto, a problematizar o Freire é que eu li e leio outros autores esquerdistas. O critério pra mim é o seguinte: o cara não pode ser energúmeno nem intelectualmente desonesto. Recentemente, andei lendo umas coisas muito interessantes do Antonio Gramsci. A comparação entre o Freire e o Gramsci é muito ilustrativa. O primeiro era apenas um comunista, o segundo um grande pensador, apesar de comunista.
A minha curiosidade pelo Gramsci foi suscitada por uma citação de E. D. Hirsch Jr., em um artigo que vale a pena ser lido. O artigo se intitula "Why traditional education is progressive?" e pode ser lido aqui. A história do Hirsch é a seguinte. Agora ele está com 90 anos e ativo. É um dos principais psicólogos educacionais americanos. Defende a tese de que a principal função da educação é transmitir conhecimento. Defende a tese de que privar as crianças pobres de conhecimento é um mecanismo de dominação de classe. Acusam o Hirsch de ser direitista. Ele não é direitista não. Acontece que o Hirsch é um daqueles comunistas "old school", do tempo em que marxistas estavam mais preocupados com a infra- do que com a super-estrutura. Qual não foi a minha surpresa, portanto, quando, ao ler o Hirsch, me deparei com a seguinte citação do Gramsci:
O novo conceito de escolarização está em sua fase romântica, em que a substituição dos métodos “mecânicos” pelos “naturais” tornou-se exageradamente doentia ... Anteriormente, os alunos pelo menos adquiriam certa bagagem de fatos concretos. Agora não haverá mais bagagens para colocar em ordem ... O aspecto mais paradoxal de tudo isso é que esse novo tipo de escola é preconizado como democrático, embora na verdade esteja destinado não apenas a perpetuar as diferenças sociais, mas a cristalizá-las em complexidades chinesas (Gramsci, 1932, Cadernos do Cárcere, XXIX).
Fiquei intrigado com o contraste oferecido por essa citação com as concepções contemporâneas (neomarxistas, neo-colonialistas, pós-modernas etc.) de que a alta cultura não passa de um sistema de dominação ideológica e de que a missão da educação é transformar a realidade fabricando "justiça social". (Nem que seja às custas de genocídio...) Parece que, ao invés de tirar Shakespeare e Dante do currículo, Gramsci estava mais interessado em garantir que a classe operária também tivesse acesso a esse paraíso da alta cultura.
Será que é assim mesmo? Fui conferir no original. Podem me acusar de tudo, menos de ser preguiçoso para ler. Ler, dar aulas e tentar escrever são as coisas que, realmente, faço com gosto. (Além de atender consultas...) Dois textos do Gramsci sobre educação - "A organização da educação e da cultura" e "Em busca do princípio educacional" - estão disponíveis aqui. Vale a pena a leitura. O contraste com o Paulo Freire é brutal.
Antes de ir adiante, é preciso fazer uma advertência. Aquele mesmo aluno, que me me desemburrou do Paulo Freire, me advertiu: "Tenha cuidado. O Gramsci é outro desses caras que uma hora fala uma coisa e outra hora fala outra. No patuá deles, isso se chama dialética". Vamos, finalmente, às conclusões que eu cheguei.
Como bom dialeticista, Antonio Gramsci cultivava visões contraditórias sobre a educação. Por um lado, ele identificava a escola como um aparelho de dominação estatal. Ou seja, como um moedor de carne com a função de reproduzir as relações de classe vigentes na sociedade. Essa é a perspectiva predominante de autores como Paulo Freire e da escola de "pensamento" pós-colonialista. A educação é uma forma discursiva intrinsecamente opressora e conducente à reprodução de relações de dominação entre homens e mulheres, straits and gays, negros e brancos, colonizadores e colonizados.
Segundo a perspectiva pós-moderna, a alta cultura é intrinsecamente perversa. Não deve ser o business da escola permitir que os garotos da favela acessem a alta cultura. Ao contrário, seguindo Freire, a perspectiva pós-moderna considera que não existem saberes superiores ou inferiores, apenas saberes diferentes. Considera que os diferentes saberes dos oprimidos precisam não apenas ser respeitados, mas também cultivados e, em última instância, devem substituir o saber perverso do macho branco opressor.
No fundo, no fundo, o Gramsci é o culpado isso. Foi ele que fundou o neomarxismo. Até Gramsci, os marxistas se ocupavam apenas em lutar para apoderar-se da infra-estrutura econômica. Gramsci teve o insight brilhante de que poderia ser muito mais eficiente tomar conta do mundo pela superestrutura ideológica. Gramsci foi o pai da guerra ideológica que nos divide atualmente. Gramsci foi o pai da idéia de que os intelectuais orgânicos do Partido deveriam se infiltrar e tomar conta da superestrutura ideológica. Infiltraram-se por todo o lado, mas principalmente tomaram conta da imprensa e da educação. Hoje mandam na internet e policiam o nosso pensamento.
Mas, como falei acima, Gramsci era um dialeticista. Ele conseguia ver os dois lados de uma questão. O outro lado diz respeito ao fato de que o acesso à alta cultura era o caminho para a formação dos intelectuais orgânicos do Partido. A escola é a única chance de o menino da favela acessar a alta cultura e ser alguém na vida... ou servir ao Partido.
O contraste entre o Paulo Freire e o Antonio Gramsci é brutal. Se o Freire é o pesquisador brasileiro mais considerado internacionalmente, dá pra entender perfeitamente porque a nossa reputação não é das melhores. A palavras "scholarship" é uma das minhas prediletas em inglês. Scholarship tem dois significados principais. Pode se referir a uma bolsa de estudos, ou pode se referir à erudição, a hábitos de honestidade intelectual, de considerar todos os ângulos de uma questão, de correr atrás de toda informação necessária antes de emitir um juízo. Em alemão o pessoal fala em "Bildung" (cultura, formação, erudição) ou "gebildet sein" (ter uma cultura pessoal). É isso. O que sobrava ao Freire em arroubo ideológico, faltava em "scholarship". Pera aí? Talvez ele fosse mais um coitadinho, mais um barrado do baile da alta cultura. Talvez não tivesse "scholarship" sob a forma de bolsa de estudos. Pouco provável. Seu pai era capitão da PM e ele estudou direito na então Universidade do Recifem atual UFPE. Deve ter passado mais tempo no centro acadêmico do que na biblioteca.
P. S. Se você chegou até o final desse "textão", merece um confortinho: