Sunday, June 16, 2013

Regras para citações bibliográficas

Tenho observado que alguns alunos apresentam dificuldades para captar as normas que regem a etiqueta das citações bibliográficas. Lendo textos de alunos, muitas vezes fico com a impressão de que o cara citou o primeiro trabalho em que leu um determinado assunto. Assim, à êsmo. No caso de alguns alunos é possível até mesmo reconstruir a cronologia das suas leituras. Como se a ordem em que o cara foi aprendendo as coisas tivesse qualquer relevância...

Não é assim que a coisa funciona. Um dos critérios que os referees usam para avaliar a qualidade de um trabalho científico diz respeito às citações. O estilo de citações pode ser muito revelador do conhecimento ou ignorância do autor. As citações em um texto científico não podem ser feitas a êsmo. Devem refletir a evolução e o estado atual de conhecimento de um dado tópico. E o conhecimento de que o autor dispõe.

A seguir vou descrever algumas regrinhas que eu uso. Não tenho pretensão a ser dono da verdade. Mas acho que estas regrinhas têm uma certa lógica.

Artigos originais em periódicos com revisão por pares
Sempre procurar citar artigos originais, publicados em periódicos indexados com revisão por pares e que, principalmente, tenham como objeto principal de estudo o fato que está sendo mencionado. O artigo original publicado em periódico indexado, revisado por pares e em inglês é o padrão-ouro da evidênccia científica. É melhor transacionar com moeda forte do que com moeda fraca. É sempre importante citar trabalhos cujo objetivo principal tenha sido a questão mencionada. Não citar coisas que outros autores apenas mencionam de passagem ou na discussão dos seus resultados.

Revisões literárias
Revisões literárias ou tradicionais não devem ser citadas. Este tipo de estudo têm finalidade apenas didática.  A utilidade das revisões tradicionais ou literárias é dar uma geral sobre um determinado assunto. São úteis como introdução. Como sua função é principalmente didática, não devem ser citadas em uma dissertação, tese ou artigo. O conhecimento adquirido a partir de artigos originais é fragmentário. Leva um tempo para montar o quebra-cabeça. As revisões são úteis para traçar uma visão geral. Mas as revisões sistemáticas e meta-análises são preferíveis.

Revisões sistemáticas e metanálises
Devem sempre ser citadas. As revisões sistemáticas e metanálises ocupam o mais alto patamar da evidência científica. Sempre que houver alguma revisão sistemática ou metanálise de um assunto é  conveniente citá-la. Este tipo de trabalho é altamente considerado e pode ser muito útil na organização das idéias. Estruturar a introdução de um trabalho em cima de uma revisão sistemática é uma ótima maneira de começar o negócio. As revisões sistemáticas proporcionam também uma acesso rápido e fácil a toda à literatura. Identificada uma revisão sistemática fica mais fácil a tarefa de revisão. Basta correr atrás dos trabalhos publicados posteriormente. Até o momento da publicação a revisão bibliográfica está resolvida. As revisões sistemáticas estruturam o conhecimento e fornecem parâmetros metodológicos. As metanálises estimam a magnitude dos efeitos, orientado a avaliação da significância teórica, prática, clinica de uma evidência dada.

Capítulos de livro
Muito cuidado com as citações de livros e capítulos de livros. Este tipo de literatura pode não ser tão facilmente acessivel. Se o leitor não dispõe da obra em sua biblioteca particular, precisa ir até a biblioteca da sua faculdade para conferir. Por vezes a obra pode não estar disponível na biblioteca mais próxima.  Se o leitor tiver que se esforçar muito para avaliar a validade ou fidedignidade de uma informação, ele vai ficar de má-vontade. É sempre melhor privilegiar artigos originais publicados em periódicos indexados e com revisão por pares. A indexação permite o fácil e rápido acesso. A revisão por pares é um selo de garantia. Uma razão adicional é que a informação contida em capitulos tende a ser menos atualizada do que a informação publicada em artigos. A vantagem dos capítulos é que os autores têm mais liberdade de especular, uma vez que os controles são menos rígidos do que no caso dos periódicos. Isto pode ser interessante para aprender. Mas, geralmente, não justifica citação.

Livros-texto
Não citar informações de livros-texto. Isto transmite a impressão de que o autor tem um conhecimento apenas superficial do assunto. Informações de livros-texto são permitidas quando se trata de fatos estabelecidos em outras áreas do conhecimento, mais remotas ao tópico do trabalho. Livros-texto devem ser, entretanto distinguidos dos clássicos. Citar os Principles of psychology do William James é chique. Citar um manual recente de psicologia cognitiva traduzido para o português é caipirice.

Relevância
Citar apenas trabalhos que representem algum tipo de contribuição relevante para uma determinado ponto que está sendo enfatizado. É um pecado muito grave citar o primeiro autor lido que discutiu a questão mencionada, às vezes apenas de passagem. O foco principal do trabalho citado tem que ser a questão que está sendo enfatizada. O trabalho citado precisa representar uma contribuição importante, no sentido de ter sido o primeiro a mostrar algo, ou o artigo que melhor controlou as variáveis confundidoras, ou fez alguma inovação metodológica ou conceitual, contribuindo assim para estabelecer um fato de forma mais sólida. Revisões sistemáticas e metanálises também são altamente relevantes e merecem se recitadas. 

Novidade
Os referees são enviesados para a novidade. Ao citar alguma coisa, é sempre recomendável que o autor se pergunte se esta é a contribuição mais recente disponível para a questão. Caso contrário, deve ser a primeira, ou aquela que se destacou pela excelência metodológica. Em algumas áreas do conhecimento a taxa de turn-over do conhecimento é mais lenta. Ou seja, não necessariamente os artigos mais recentes contêm novidades radicais em relação ao que foi publicado há mais tempo. Entretanto, é importante sempre ter em mente de que o referee pode ser alguém que atua em uma área com turn-over mais rápido. Neste caso ele vai dar tinta no trabalho. Vai achar que o autor está desatualizado. É bom recomendável não ter este telhado de vidro.

Afinidades eletivas
Existem regras para a citação. Mas a escolha das referências citadas depende também de fatores subjetivos. Os autores sempre preferem citar os amigos do que os não-amigos ou adversários. Isto é humano. Mas convém não abusar. O autor não pode transmitir a impressão de estar sendo muito enviesado na escolha das referências citadas. Pega mal. É melhor não dar bandeira dos próprios viéses.

Auto-citação
A auto-citação é um recurso interessante para aumentar o indíce H de um autor. Mas, novamente, é importante ter cuidado. A auto-citação pode despertar aversão do leitor e enviesá-lo contra o texto, diminuindo a sua aceitação. De novo, é melhor ser discreto, não demonstrar muito a própria vaidade. O profile não pode ser nem muito high nem muito low. Apenas na medida.

Língua nativa
Preferencialmente citar trabalhos redigidos em inglês. A regra é assim. Se o autor considera que o trabalho é bom, vai redigí-lo e publicá-lo em inglês, para atingir uma audiência maior. Se o autor considera que o trabalho é  bom, vai publicá-lo em um periódico indexado e revisado por pares, para aumentar a acessibilidade e para ganhar um selo de qualidade. Os trabalhos publicados em língua nativa são geralmente de qualidade inferior. P. ex., estudos com resultados negativos. Se o interesse for por estudos com resultados negativos, então é importante buscar sistematicamente trabalhos publicados nas línguas nativas dos autores. Citações em língua nativa são justificáveis, p. ex., quando se trata da adaptação e validação de um procedimento de teste para uma uma determinada língua, país etc. Também podem e devem ser citados trabalhos em língua nativa que abordem alguma questão  cultural ou sócio-econômico-demográfica específica. De um modo geral, publicações em língua nativa são o cemitério dos resultados de pesquisa. Ninguém dá bola. A razão é que o público alcançado geralmente é menor, tem uma qualificação inferior, a circulação dos periódicos não é adequada etc.

Precisão
As citações e referências devem ser corretas. Citações e referências trocadas, omissas ou erradas são inadmíssiveis. É causa de reprovação sumária. Na época dos bancos digitais e dos programas computacionais de administração de citações os erros não têm mais vez. São pecado mortal.

Timing
Um dos erros mais comuns cometidos pelos alunos é não pegar a referência na hora em que é citada. Isto é mortal. Muitas vezes o aluno marca com XXX ou outra marca qualquer e deixa para procurar depois. Isto é, realmente, mortal. Na maioria das vezes o cara esquece de procurar. Na hora em que vai revisar deixa passar. Na hora da revisão do texto muitos autores já estão com a paciência esgotada. Já revisaram o troço tantas vezes que não agüentam mais. A atenção vacila e os erros passam batidos. Vale mais à pena interromper o fluxo da escrita na hora e pegar a referência correta na hora. Ou então, na hora de revisar, algumas semanas mais tarde, o cara não se lembra mais de qual citação queria fazer. Aí ferrou mesmo. Uma estratégia boa, pra quem não gosta de mexer com software, é correr na PubMed, copiar a referência e colar na lista. A formatação pode ficar pra depois. Isto evita dissabores futuros. Com o orientador, com a banca examinadores e com os referees que vão ler o artigo submetido. Acreditem em mim.

Leitura metodologicamente orientada
Para aprender a escrever ciência é preciso primeiro aprender a ler ciência. Ler ciência significa orientar metodologicamente a análise dos textos. Sempre se perguntar sobre a validade do trabalho. Se os objetivos e hipóteses estão formulados claramente, se o delineamento escolhido é adequado. se as variáveis confundidoras foram adequadamente controladas, se as medidas são precisas e válidas, se a amostra é adequada (representatividade, poder estatístico), se a análise foi adequada para a natureza dos dados, se os resultados são consistentes entre si e com a literatura, se as conclusões são apoiadas pelos dados etc. Uma boa estratégia é identificar o(s) argumento(s) principais. Um argumento consiste de premissas e conseqüências, situadas num determinado estado de conhecimento. A relação entre as premissas e conseqüências deve ser lógica. Também é importante identificar qualificadores, ou situações em que a relação premissas-conseqüências é atenuada, bem como contra-argumentos. A síntese de um argumento é geralmente expressa sob a forma de uma hipótese, formulada de forma condicional: "Se... então..." Só entendemos um artigo quando identificamos as hipóteses principais subjacentes e o seu contexto argumentativo. Só estamos em condições de escrever e citar se formulamos de forma explícita os argumentos/hipóteses pertinentes ao nosso trabalho. Não tem como fazer citações corretamtente sem conhecer metodologia e sem respeitar a lógica.

Friday, June 14, 2013

Raízes neurológicas da neuropsicologia

Hoje fiquei saudosista. Lembrei-me de quando, há 35 anos atrás, em julho de 1978, eu fiz um estágio de férias nas Enfermarias 14 e 15 da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Foi uma das experiências que mudou minha vida. (A outra foi conhecer a Maria Raquel Carvalho). Eu andava me sentindo intoxicado de literatura marxista e psicanalítica. Resolvi dar uma conferida na neurologia. Foi amor à primeira vista. Saquei que eu levava muito mais jeito para lidar com os pacientes neurológicos do que com os pacientes psiquiátricos. Mas, sobretudo, me identifiquei com as questões colocadas pela neurologia e neuropsicologia. 

Outras instituições e pessoas me influenciaram, mas foi lá na Santa Casa que eu me iniciei na neurologia e neuropsicologia. Foi lá que moldei meu perfil de interesses e o estilo profissional. Foi lá que aprendi a gostar das bases neurológicas e a neuropsicologia das dificuldades de aprendizagem escolar. Sinto-me privilegiado por estar trabalhando há 35 anos nesta área. 

Nâo vou mencionar outros professores e colegas com quem tive a oportunidade de trabalhar e aprender lá na Santa Casa. São muitos e tenho medo de esquecer alguém. Vou falar apenas do Prof. Celso Machado de Aquino, que na época já era professor emérito, mas ainda tinha uma  enorme influência intelectual. O Prof. Celso era uma figura imponente: alto, elegante, culto. Usava um avental branco, todo engomado e gigantesco. O avental dele ia até os tornozelos. Ele ia diariamente à Enfermaria e se ocupava de examinar os pacientes com um detalhe e um preciosismo fantásticos. Ele parecia conhecer todos os detalhes da semiologia neurológica francesa. Foi com ele que eu tomei conhecimento da obra de Dejerine  & Dejerine-Klumpke (1926). O Prof. Celso tinha um gosto enorme em ensinar a examinar. Fazi jus ao título.

Trabalhei nas Enfermarias 14 e 15 da Santa Casa de 1978 até o final de 1983. Quando fiz concurso para a residência médica no final de 1981, o Prof. Celso estava na banca. Ele me perguntou por que eu queria ser neurologista? Se o meu meu pai era médico no interior, por que eu não preferia ir trabalhar com ele? Perguntou-me se eu tinha algum problema com o meu pai...

Respondi-lhe que eu não tinha problema nenhum com meu pai. Que ao contrário, me dava muito bem com ele. Inclusive eu tinha uma bela experiência de sempre trabalhar junto com o Rubén Léo Haase no Hospital Tuparendi durante as minhas férias. Que a minha questão com a neurologia era o desafio intelectual. Eu achava que só a neurologia me proporcionaria trabalhar com as questões científicas e filosóficas que moviam minha imaginação. Que eu não conseguiria isto sendo médico no interior. Nâo sei de onde que o velho tirou esta pergunta. Será que ele achava que eu era um cara assim meio revoltado, meio conflituado?

Duas foram as  leituras mais importantes daquela época, o Barraquer-Bordas (1976) e o Luria (1981). O Barraquer é um livro de fisiopatologia das doenças neurológicas. Ensinou-me a compreender os sintomas neurológicos não apenas a partir da anatomia, como era feito classicamente no século XIX, mas a partir da fisiologia. Neurologia não é só uma questão de anatomia, mas também de função. Isto parece bobagem, mas era uma grande novidade na segunda metade do século XX. Foi apenas  quando alguns discipulos do Sherrington, como o Denny-Brown, começaram a meter fisiologia na neurologia é que a coisa começou realmente a andar.

O Luria foi minha porta para a neuropsicologia. Foi a primeira visão sistemática que eu obtive da neuropsicologia. Aprendi que as observações comportamentais podem ser um caminho muito interessante para compreender a estrutura e função do cérebro. Acabei me identificando totalmente com o negócio. Foi somente alguns anos mais tarde que eu tomei contato com a ciência cognitiva e com a psicometria, completando o tripé de conhecimentos que constituem a neuropsicologia. Tenho o maior carinho pelo Barraquer e pelo Luria. Adoro citá-los. Mas, evidentemente, de lá pra cá muita coisa aconteceu.

Lembrar destas coisas todas me faz refletir sobre como éramos caipiras naquela época. Como vivíamos isolados do mundo, tendo apenas uma vaga idéia de que como as coisas funcionavam no resto. Tipo assim aquele filme sobre o Juscelino: "Bela noite para voar". O Brasil era deliciosamente capira. Ainda somos. Mas não temos mais a mesma inocência.



Estas lembranças das origens neurológicas também enfatizam a natureza interdisciplinar da neuropsicologia (Haase et al., 2012). Hoje, a neuroposicologia só é o que é porque profissionais e pesquisadores de diversas áreas aprenderam a trabalhar juntos para construir uma nova área de conhecimento.

É importante salientar, entretanto, que a felicidade não consiste apenas em trabalhar durante anos e anos em uma área. A alegria maior é poder compartilhar os conhecimentos adquiridos.


Referências

Barraquer-Bordas, L. (1976). Neurología fundamental. Barcelona: Toray.

Haase, V. G., Salles, J. F., Miranda, M. C., Malloy-Diniz, L., Abreu, N., Argollo, N., Mansur, L. L., Parente, M. A. M. P., Fonseca, R. P., Mattos, P., Landeira-Fernandez, J., Caixeta, L. F., Nitrini, R., Caramelli, P., Teixeira Jr. A. L., Grassi-Oliveira, R., Christensen, C. H., Brandão, L., Corrêa da Silva Filho, H., da Silva, A. G. & Bueno, O. F. A. (2012). Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade brasileira de pesquisadores/clínicos em neuropsicologia. Neuropsicologia Latinoamericana, 4, 1-8 (http://neuropsicolatina.org/index.php/Neuropsicologia_Latinoamericana/article/view/125). 


Luria, A. R. (1981). Neuropsicologia fundamental. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos/São Paulo: EDUSP.

Dejérine, J. J. & Dejérine-Klumpke, A. (1926). Sémiologie des affections du système nerveux. Paris: Masson.

Thursday, June 06, 2013

O sistema motor como arqueologia do desenvolvimento cerebral


Há quem não concorde. São poucos, mas existem. Na minha opinião o tchan da neuropsicologia é a correlação anátomo-clinica ou estrutura-função (Haase et al., 2009, 2010). Apesar do charme dos testes, a atividade do neuropsicológo não se restringe ao uso do testes. Existe todo um arsenal de outros conhecimentos que são indispensáveis para o exercício profissional na área. Os testes neuropsicológicos constituem apenas atalhos, métodos padronizados de observação do comportamento, que nos permitem fazer observações clinicas mais precisas e válidas. Mas tem todo um lado neurológico da neuropsicologia (Cytowic, 1996). O seu lado neurológico consiste da epidemiologia clinica das doenças do sistema nervoso e dos princípios anátomo-funcionais que organizam o cérebro e permitem o estabelecimento de correlações anátomo-clínicas. Não tem como fazer neuropsicologia sem conhecer neurociência e neuropatologia (Pliszka, 2004).

O IX Curso de Férias de Neuropsicologia promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677) terá como tema central o lado neurológico da neuroposicologia do desenvolvimento. Serão abordados os aspectos neuropsicológicos das condições neurológicas mais comuns na infância e adolescência, tais como epilepsia, enxaqueca, transtornos de aprendizagem, deficiência intelectual e paralisia cerebral. Estas entidades constituem o feijão-com-arroz da atividade profissional de neurologistas e neuropsicológicos. O curso visa subsidiar profissionais de outras áreas com os conhecimentos neurológicos indispensáveis ao exercício da neuropsicologia coma população infanto-juvenil.

Neste pequeno ensaio vou discutir a relevância do exame do sistema motor para o neuropsicólogo. O método anátomo-clinico ocupa uma posição central no exame neurológico. Desde o início do século XIX os neurologistas se baseiam no fato de que existem relações sistemáticas entre determinadas alterações funcionais e a localização cerebral das lesões ou disfunções (Haase et al., 2008, 2010). O diagnóstico de localização ou topográfico fornece informações preciosas quanto à etiologia ou pelo menos nosologia de uma determinada condição mórbida do sistema nervoso.

E a localização em termos de nível de comprometimento do sistema motor é um dos caminhos mais eficazes para o diagnóstico neurológico. Como já foi dito, isto é sabido há muito tempo. Uma síntese da doutrina neurológica clássica da localização lesional e organização hierárquica do sistema motor foi a obra monumental da vida do neurologista John Hughlings Jackson (Catani, 2011).  Segundo Jackson, o sistema nervoso é organizados em níveis hierárquicos integrados. Cada nível de organização do sistema regula o nível imediatamente inferior, sendo por sua vez controlado pelo nível imediatamente superior. As relações entre os níveis são de inibição e excitação. Os sintomas neurológicos podem, portanto, assumir uma dupla natureza. Podem ser irritativos, quando causados por excesso de atividade neural tal como nas epilepsias, ou podem ser deficitários, quando seqüelares a lesões, tais como uma paralisa ou anestesia.

Mas as lesões não causam apenas sintomas deficitários. Os sintomas decorrentes de lesões podem ser negativos (deficitários) ou positivos (de liberação). Os sintomas de liberação decorrem da perda de controle em um determinado nível hierárquico em decorrência da lesão do nível imediatamente superior. Exemplos de sintomas de liberação são os automatismos, tais como a persistência de reflexos próprios do recém nascido em crianças com lesão cerebral perinatal. O trabalho clinico e teórico de Jackson legou aos neurologistas uma concepção do sistema nervoso como uma entidade maravilhosamente integrada, que é ao mesmo tempo modular e sistemicamente organizada. A herança prática de Jackson e de outros é o método de localização lesional que permite aos neurologistas restringir o campo de busca por uma etiologia a partir do diagnóstico topográfico.

O sistema motor, um dos mais conhecidos e acessíveis clinicamente, desempenha um papel primordial no diagnóstico neurológico e neuropsicológico. Segundo Martha Denckla (1997), o exame do sistema motor constitui uma espécie de arqueologia do sistema nervoso. Identificando o nível de comprometimento motor é possível inferir a fase do desenvolvimento cerebral em que um processo patológico se instalou. Os princípios de organização do sistema motor são válidos também para o cérebro em desenvolvimento, como veremos a seguir.



A fotografia que ilustra este ensaio mostra Ernst Moro (1874-1951), demonstrando a reação de endireitamento e a marcha reflexa em um recém nascido (Weirich & Hofmann, 2005). Um dos precursores da neuropediatria, Moro foi um pediatra de língua alemã, nascido em Graz e posteriormente professor em Heidelberg até que sua carreira fosse abortada pelo Nazismo. Seu nome ficou associado ao famoso reflexo de Moro ou de sobressalto. Mas a fotografia mostra como ele já conhecia toda uma gama de reações motoras próprias do recém nascido e sabia valorizar sua importância clinica.

A partir da década de 1960 com a introdução do tratamento intensivo e o aumento da sobrevida de bebês cada vez mais  prematuros, os neurologistas foram aprendendo a valorizar o desenvolvimento do sistema motor como um indicativo da maturidade fetal. Diversos pesquisadores, tais como Claudine Amiel-Tison (1968) descobriram que existe uma espécide de blueprint genética que regula o desenvolvimento do sistema motor. E que o ritmo de desenvolvimento é o mesmo independentemente do momento em que o bebê nasce. Assim, uma brincadeira que se faz freqüentemte é dizer que se o sorriso social no recém-nascido de termo ocorre após 21 dias de vida extra-uterina, então o sorriso social de um prematuro de 27 semanas deve ocorrer exatamente após 81 dias de vida. O exame neurológico, junto com outros parâmetros clínicos bem como métodos eletroencefalográficos é usado, portanto, para determinar a maturidade fetal.

Pesquisas mais recentes mostram que esta blueprint genética não vale apenas para o desenvolvimento motor, mas pode também ser observada em outras áreas tais como a linguagem. A percepção categorial é o fenômeno através do qual os humanos conseguem perceber quaisquer realizações fonéticas como pertencentes a uma determinada categoria fonêmica, independentemente da sua variabilidade dentro de um espectro de características psicoacústicas. Os recém-nascidos humanos exibem percepção categorial para praticamente todos os possíveis contrastes fonêmicos existentes nas mais diversas línguas. Esta habilidade é perdida até o final do primeiro ano de vida. No último trimestre do primeiro ano o bebê retém apenas a percepção categorial dos pares de fonemas que são contrastivos em sua língua materna. Um pesquisa muito interessante foi conduzida com bebês prematuros por Peña, Werker & Dehaene-Lambertz (2012). Estas autoras demonstraram que a prematuridade não acelera o desenvolvimento da seletividade na percepção categorial de fonemas. Ou seja, bebês prematuros não desenvolvem a seletividade na idade cronológica de 12 meses, mas na idade correspondente, corrigida para sua prematuridade.

Será que ocorre alguma coisa semelhante em relação à prontidão escolar dos prematuros? Será que é preciso dar um desconto para os prematuros e entender que eles podem ainda não estar prontos para enfrentar determinados currículos que são propostos na escola? Um caso clássico são as crianças que fazem aniversário no meio do ano e que entram no primeiro ano mais cedo do que os seus pares. Morrow e cols. (2012) demonstraram que estas crianças têm um risco relativo 1,3 vezes maior de serem diagnosticadas e receberem tratamento medicamentoso para TDAH. Este resultados pode ser interpretado como um sinal de alerta para pais e professores. Muitas dificuldades iniciais de aprendizagem escolar podem resultar de um descompasso entre as exigências curriculares e a maturidade da criança. Muitas vezes precisamos assegurar as famílias e professoras de que crianças que não dão conta de parar quietinhas na sala de aula ou de aprender a ler hoje, podem vir a fazê-lo sem maiores dificuldades daqui a seis meses.

Crianças que apresentam problemas de comportamento ou dificuldades de aprendizagem têm o direito de realizarem uma avaliação neurológica. Este direito precisa ser garantido pelo estado para os mais carentes e não pode lhes ser sonegado com base em argumentos ideológicos relacionados a uma suposta “medicalização do ensino”. Quase todas as crianças com transtornos do desenvolvimento, da aprendizagem e de comportamento apresentam transtornos motores. As dificuldades motoras são observadas na deficiência intelectual, autismo, TDAH, dislexia, discalculia etc. O exame neurológico de grandes grupos de crianças demonstra que as alterações motoras são preditivas de problemas de aprendizagem e comportamentais (Baatstra et al., 2003).

E o neurologista e o neuropsicólogo estão em condições de identificar estas dificuldades, desde que as conheçam. As dificuldades práxicas são indicativas de comprometimentos corticais, as alterações posturais e movimentos involuntários anormais indicam disfunções dos gânglios da base a incoordenação motora sugere déficits cerebelares (Tavano et al., 2010). As alterações motoras são tão importantes que Martha Denckla (2003) propôs utilizá-las de forma sistemática como critério clinico para o diagnóstico de TDAH. Na sua opinião, se a criança ou jovem não apresenta alterações motoras, diminui muito a probabilidade de que os seus sintomas sejam causados por um verdadeiro TDAH. E aumenta a probabilidade de que os sintomas de impulsividade, hiperatividade e desatenção sejam causados por outros fatores, tais como ansiedade ou inadequação das exigências parentais e escolares. Nesta perspectiva, nas palavras de Denckla, o exame do sistema motor constitui uma verdadeira arqueologia do desenvolvimento cerebral. Os déficits motores funcionam como marcadores da intensidade e extensão do agravo que causou os problemas da criança e, ao mesmo tempo, permitem localizar as disfunções na hierarquia sistêmica do desenvolvimento cerebral. As consequências clinicas e ducacionais disto estão longe de ser triviais.

Se você ficou interessado neste assunto, não perca o IX Curso de Férias de Neuropsicologia, promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG e que ocorrerá entre os dias 15 e 19 de julho de 2013 na FAFICH – UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677).



Referências

Amiel-Tison, C. (1968). Neurologicla evaluation of the maturity of newborn infants. Archives of Diseases of Childhood, 43, 89-93.

Batstra, L., Neeleman, J., Hadders-Algra, M. (2003). The neurology of learning and behavioral problems in pre-adolescent children. Acta Psychiatrica Scandinavica, 108, 92-100.

Catani, M. (2011). John Hughlings Jackson and the clinico-anatomical correlation method. Cortex, 47, 905-907.

Cytowic, R. (1996). The neurological side of neuropsychology. Cambridge, MA: MIT Press.

Denckla, M. B. (1997). The neurobehavioral examination in children. In T. E. Feinberg & M. J. Farah (Eds.) Behavioral neurology and neuropsychology (pp. 721-728). New York: McGraw-Hill.

Denckla, M. B. (2003). ADHD: topic update. Brain & Development, 25, 383-389.

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P., da Mata, F. G., Gonzaga, D. M., Silva, J. B. L, Géo, L. A. & Ferreira, F. O. (2008). Um sistema nervoso conceitual para o diagnóstico neuropsicológico. Contextos Clinicos, 1, 125-138.

Haase, V. G., Medeiros, D. G., Pinheiro-Chagas, P. & Lana-Peixoto, M. A. (2010). A "Conceptual Nervous System" for multiple sclerosis". Psychology & Neuroscience, 3, 167-181.


Morrow, R. L., Garland, E. J., Wright, J. M., Maclure, M., Taylor, S. & Dormuth, C. R . (2012). Influence of relative age on diagnosis and treatment of attention-deficit/hyperactivity disorders in children. Canadian Medical Association Journal, 184, 755-762.

Pliszka, S. R. (2004). Neurociência para o clinico de saúde mental. Porto Alegre: ARTMED.

Tavano, A., Gagliardi, C., Martelli, S. & Borgatti, R. (2010). Neurological soft signs feature a double dissociation within the language system in Williams syndrome. Neuropsychologia, 48, 3298-3304.


Weirich, A. & Hoffmann, G. F. (2005). Ernst Moro (1874-1951) - A great pediatric career started at the rise of university-based pediatric research but was curtailed in the shadows of Nazi laws. European Journal of Pediatrics, 164, 599-606.