A freqüência de ocorrência de sentimentos de tédio na sala
de aula contrasta com a ideologia oficial. A cartilha sócio-construtivista e
paulo-freireana reza que os objetivos maiores da educação escolar dizem
respeito à formação da cidadania e ao desenvolvimento do pensamento crítico.
Segundo essa perspectiva a educação escolar não pode se reduzir à transmissão
de conhecimento ou aquisição de habilidades (Haase et al., 2015). Ao invés
disso, a escola deve promover o engajamento ativo dos estudantes,
preferencialmente em grupos, com situações problema que lhes permitam
desenvolver habilidades críticas ou construir o conhecimento de forma autônoma.
A aprendizagem por descoberta e cooperação deve promover a criatividade e
capacidade de iniciativa, contrastando com a decoreba mecânica de um amontoado
de fatos e habilidades que podem não fazer sentido para o aluno.
Dada a influência das idéias sócio-construtivistas e paulo-freireanas no Mundo inteiro e no Brasil
em particular, seria de se esperar que o engajamento dos alunos com as
atividades escolares e a motivação para o desempenho fossem altos. Na prática
não é isso que acontece. Até 50% dos alunos relatam que o tédio é uma
experiência cotidiana em sala de aula (vide revisão em Macklem, 2015). Os
motivos pelos quais os alunos sentem-se entediados são diversos. Em um survey
conduzido com 81000 estudantes da High School em 103 escolas de 27 estados
norte-americanos, 81% dos alunos entediados declararam que os materiais
didáticos não eram atraentes, 42% consideraram que não viam relevância no
trabalho escolar. Para 33% as atividades escolares não eram suficientemente
desafiadoras e 26% achavam que o trabalho acadêmico era muito difícil.
A partir da minha experiência como pai, clinico e docente do
ensino superior, as respostas dos estudantes convidam a fazer algumas
observações. A falta de atratividade dos materiais didáticos é um fato notório.
Os materiais didáticos cada vez mais se caracterizam pela adoção da ideologia
politicamente correta. Só se preocupam em pregar a ecologia, a paz mundial, a
igualdade, a diversidade de gênero etc. Nâo é surpreendente que sejam pouco
atrativos, principalmente para os meninos. Os materiais escolares não fornecem “adrenalina”
suficiente para os meninos. Não pode ser à toa que a evasão escolar seja maior
entre os meninos do que entre as meninas.
Que menino gosta de cultivar bons sentimentos e discutir a relação?
Em parte, a falta de relevância é um problema estrutural. Se
os jovens tivessem a experiência dos adultos, isso não ocorreria. A dificuldade
advém do fato de que é impossível fazer transplante de juízo. Nâo há como
transplantar juízo da cabeça dos mais velhos para a cabeça dos mais jovens. Os
jovens precisam adquirir sua própria sabedoria através da experiência. Os
jovens são hedonicamente enviesados e imediatistas. Por vezes pagam um preço
alto por isso (Haase, 2009). Mas, o que fazer? É da vida. Dar mais “adrenalina”
na escola para a garotada ajudaria.
O problema é agravado pelo fato de que para um grande
contingente de crianças a escola, de fato, é irrelevante. A escola não lhes
ensina habilidades que qualifiquem os alunos para o mercado de trabalho, que os
habilitem a receber um salário maior na Sociedade do Conhecimento. Theodore
Dalrymple (2015) captou muito bem essa situação no seu livro “A vida na sarjeta”.
Para muitas pessoas pobres não faz diferença alguma aprender uma profissão e
trabalhar. Para os indivíduos do sexo masculino, os rendimentos propiciados
pelas atividades criminosas são incomparavelmente mais altos do que qualquer
salário para um profissional com baixa qualificação. Para os indivíduos do sexo
feminino, os rendimentos salariais propiciados por um emprego regular são
baixos comparativamente ao bolsa família e não compensam o esforço.
Finalmente, para quase 60% dos alunos o currículo é
inadequado. O currículo é percebido como muito difícil por 26% e muito fácil
por 33% dos alunos. A inadequação curricular decorre de dois fatos. O primeiro
deles é estrutural e diz respeito aos critérios de segregação dos alunos nas
classes. Ao longo do processo de universalização do ensino fundamental e médio
adotou-se o critério de alocar os alunos em classes ou anos escolares pela
idade e não pelo nível de habilidade. Ora, se a idade é mantida constante, o
nível de habilidades varia. O resultado é que para um grupo de crianças o
currículo será muito fácil e para outro muito difícil.
Com isso eu não estou dizendo que as crianças devessem ser
segregadas por nível de habilidades e não por idade. A segregação por nível de
habilidade criaria discrepâncias entre os alunos por faixa etária e,
conseqüentemente interesses. Ao mesmo tempo, contribuiria para segregar e
estigmatizar os alunos que tivessem dificuldades. Com isso não digo também que
os alunos com dificuldades não sejam estigmatizados nas salas de aula nas quais
convivem com crianças sem dificuldades de aprendizagem... O problema não é tão
simples assim.
O meu argumento é que o nível de habilidades, principalmente
a inteligência, mas também habilidades especificas como o processamento
fonológico, senso numérico e capacidade de auto-regulação etc. devem ser
considerados na individualização do currículo. A individualização do currículo é
dificultada pelo fato de que a ideologia politicamente correta não aceita que a
inteligência e o perfil individual de habilidades possam desempenhar um papel
na motivação e desempenho escolar (Dweck, 2017).
A ideologia do politicamente correta e a conseqüente
negligência das diferenças individuais podem, portanto, ter conseqüências
trágicas para a motivação e desempenho escolar. Os alunos com mais facilidade
se entendiam com um currículo aquém das suas possibilidades. Os alunos com mais
dificuldade se entediam com um currículo além das suas possibilidades. O viés
contrário à instrução, treinamento e aquisição de informação e habilidades
básicas torna o currículo irrelevante. A ênfase na ideologia politicamente
correta torna o currículo aversivo.
Quais são os possíveis remédios? Obviamente, não tenho a
pretensão de apresentar soluções definitivas. Quero apenas “problematizar”.
Também não sou professor do ensino fundamental ou médio. Entretanto, como professor
do ensino superior, a minha experiência indica que uma forma fantástica de dar “adrenalina”
para os alunos é engajá-los em projetos de iniciação científica ou extensão.
Nesses projetos os alunos adquirem habilidades de resolver problemas, de estudar
e se auto-ensinar, de se preparar para o mercado de trabalho, de trabalhar em
equipe etc. Ou seja, de se engajar e se preparar para o mundo real.
O efeito motivador da participação na iniciação científica
pode ser compreendindo a partir de um modelo de duas dimensões do engajamento e
motivação proposto por Larson (2000). Em milhares de entrevistas com jovens,
esse autor descobriu que os mesmos se sentem entediados em situações nas quais
a motivação intrínseca da tarefa é baixa e o nível de concentração exigido ou
controle externo é alto, como p. ex., em sala de aula. Os jovens relatam
maiores níveis de bem-estar em situações como ficar à toa com colegas, nas
quais a atividade é intrinsecamente motivadora e nível de concentração ou
controle externo exigido é baixo. Níveis quase tão elevados de bem-estar são
relatados em situações como prática esportiva e participação em projetos
sociais, que são intrinsecamente motivadoras e, ao mesmo tempo, permitem ao
jovem auto-regular o esforço atencional dispendido. Recomendar que as
atividades escolares propiciem mais “adrenalina” para os jovens pode parecer
wishful thinking. Mas a experiência com a iniciação científica ensina que o
troço funciona.
Que outras recomendações poderiam ser feitas a partir das
evidências disponíveis? O currículo deveria se tornar mais relevante para os
jovens, propiciando-lhes a oportunidade de adquirir habilidades que efetivamente
fizessem alguma diferença nas suas vidas. Tais como aprender a ler as palavras, interpretar textos e fazer
contas. Que lhes oportunizassem uma melhor qualificação profissional e,
portanto, a perspectiva de uma vida decente ainda que “pequeno-burguesa”. Ao
invés disso a escola fica insistindo com idéias grandiosas e românticas de
transformação da realidade social, negligenciando a aquisição de informação e
habilidades. O resultado não poderia ser outro: alunos entediados e que não
aprendem.
Finalmente, tem a questão da adaptação curricular.
Individualizar o currículo em função do perfil de habilidades e temperamento do
aluno exigiria um investimento maciço em serviços de apoio às professoras,
incluindo qualificação profissional das professoras, serviços diagnósticos e
atividades diferenciadas extra-curriculares. Um passo importante seria parar
com essa bobajada de “anti-medicalização” do ensino (Frias & Júlio-Costa,
2013) e criar uma estrutura estatal que efetivamente atendesse tanto às necessidades dos alunos com mais facilidade
quanto dos alunos com mais dificuldade.
É engraçado como o Estado Brasileiro é pródigo em criar
direitos constitucionais para os mais diversos segmentos da população.
Chegou-se ao cúmulo de criar a “bolsa bandido”. A bolsa bandido funciona assim: o cara não aprende na escola, cai na bandidagem, é preso
e o estado sustenta sua família. Ao mesmo tempo o estado tem se negado
sistematicamente a criar um arcabouço jurídico e institucional que garanta uma
assistência curricular diferenciada para as crianças superdotadas e para as
crianças com dificuldades de aprendizagem associadas a TDAH, dislexia e
discalculia etc. As razões são ideológicas. Todas as iniciativas legislativas
visando criar essa infraesturura assistencial enfrentaram ferrenha oposição dos
sindicatos de professores e não prosperaram. Os resultados são a ignorância, a
falta de qualificação para a Sociedade do Conhecimento e o tédio em sala de
aula. Tédio esse que leva à desmoralização, revolta e evasão escolar.
P. S. Freqüentemente eu também preciso lidar com a questão do tédio em sala de aula. Fico aqui deitando falação, mas eu mesmo muitas vezes não sei como lidar com o tédio dos alunos. Suspeito que grande parte do tédio advém do fato de o meu discurso é politicamente incorreto. Ou seja, eu seria "do mal" o que automaticamente desqualificaria o meu discurso. Pode ser também que eu seja muito prolixo, que fale muito complicado ou que não tenha clareza de expressão. Enfim, a coisa é mesmo complicada. E não são apenas os alunos que freqüentemente se sentem desmotivados... É da vida. Tem que aprender a lidar com isso.
Referências
Dalrymple, T. (2015). A vida na sarjeta. O ciclo vicioso da
miséria moral. São Paulo: É Realizações.
Dweck, C. (2017). Mindset: A nova psicologia do sucesso. Rio
de Janeiro: Objetiva.
Frias, L., & Júlio-Costa, A. (2013). Os equívocos e
acertos da campanha “não à medicalização da vida”. Psicologia em Pesquisa UFJF,
7, 3-12.
Haase, V. G. (2009). O desenvolvimento humano como busca de
felicidade. In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos
biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 601-635). Belo
Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4).
Haase, V. G., Júlio-Costa, A., & Lopes-Silva, J. (2015).
Por que o construtivismo não funciona? Evolução, processamento de informação e
aprendizagem escolar. Psicologia em Pesquisa UFJF, 9, 62-71.
Larson, R.
W. (2000). Toward a psychology of positive youth development. American
Psychologist, 55, 170-183.
Macklem, G. L. (2015). Boredom in the classroom. Addressing student motivation, self-
regulation, and engagement in learning. New York: Springer.
Yazzie-Mintz,
E. (2010, June). Charting the path from engagement to achievement: A report on
the 2009 high school survey of student engagement. Bloomington, IN: Indiana
University Center
for Evaluation and Education Policy (CEEP) (http://hub.mspnet.org/index.cfm/20806).