Monday, March 05, 2018

PROBLEMATIZANDO AS TEORIAS DA DISLEXIA: O EFEITO MCGURK

As teorias que procuram explicar os mecanismos subjacentes à dislexia são um assunto fascinante. Nos últimos tempos eu ando às voltas com o trabalho do Leo Blomert (Blomert, 2011, Blomert  and Froyen, 2010). Vou falar um pouquinho sobre o seu trabalho. Mas antes vou repassar as teorias cognitivas da dislexia à vol d'oiseau. 

Desde os Anos 1970 a chamada "teoria" fonológica tem desempenhado um papel muito importante na compreensão da dislexia, no seu diagnóstico e no seu tratamento. A hipótese é que as pessoas com dislexia tenham uma dificuldade na segmentação do fluxo de fala nos fonemas constituintes. Com isso torna-se muito difícil a automatização das conexões entre os sons (fonemas) e os conjuntos letras (grafemas) que os representam em uma ortografia alfabética. 

O prestígio da teoria fonológica é merecido. Ela é filha da revolução cognitiva em psicologia e lingüísticoa e de um aperfeiçoamente inaudito dos conceitos e métodos de pesquisa. A teoria fonológica é sustentada por um corpus muito robusto de evidências: a) Os déficits na segmentação consciente da fala em fonemas (consciência fonêmica) e a dificuldade com a leitura de pseudopalavras (que só podem ser lidas por correlação grafema-fonema) constituem alguns dos principaiss correlato cognitivos da dislexia; b) O método fônico de alfabetização e outras intervenções fonológica têm um efeito positivo sobre a alfabetização de crianças típicas e de crianças com dislexia. 

Mas a teoria fonológica também encontra seus percalços. A relação entre consciência fonêmica a alfabetização não é causal unidirecional, mas sim bem mais complexa. De mão dupla. Pessoas iletradas não conseguem realizar tarefas de segmentação de fonemas. Essa habilidade é aperfeiçoada com a alfabetização. Aparentemente, as representações naturais da fala são fonoarticulatórias, sendo ilustradas pelas sílabas, rimas etc. O fonema é um conceito abstrato cuja aquisição depende, em grande parte, da alfabetização. Dever-se-ia falar, portanto, em consciência fonêmico-ortográfica, já que a consciência fonêmica é tanto precursora quando conseqüência do domínio das representações ortográficas. É possível, até mesmo, criticar os estudos que mostraram efeitos do treinamento da consciência fonêmica sobre a alfabetização, uma vez que é praticamente impossível controlar o nível de conhecimento ortográfico prévio das crianças.

Uma outra pedra no sapato para a teoria fonológica é que ela parece se aplicar mais ao inglês e outras linguas com ortografia muito irregular e opaca como o francês. Em línguas mais regulares, tais como o alemão, finlandês e italiano, as regras de correlação grafema-fonema são mais regulares e transparentes e o sucesso na leitura não depende tanto da consciência fonêmica. Disléxicos falantes de alemão, têm mais dificuldade com a velocidade (fluência) de leitura do que a precisão (correlação grafema-fonema).

Minhas observações clínicas no Brasil são concordantes. A consciência fonêmica parece ser uma dificuldade maior para as crianças disléxicas no início da alfaberização. Com o tempo, a dificuldade mais saliente é observada na fluência.

Essas observações translingüísticas levaram ao desenvolvimento das teorias de duplo processo ou de dupla rota da aprendizagem da leitura e da dislexia. Segundo essas concepções, a aprendizagem da leitura depende mais da correlação grafema-fonema no início do processo, quando o indivíduo ainda não adquiriu um vocabulário de leitura que lhe permita um acesso mais direto (ou lexical) à forma fonológica e ao significado das palavras. Com a experiência, a criança passa a ler pela rota lexical, tendo um acesso mais direto, menos mas não inteiramente dependente da correlação grafema-fonema.

As duas rotas da leitura correspondem a pelo menos dois tipos de dislexia: a) dislexia fonológica com dificuldades na correlação grafema-fonema, na leitura de pseudo-palavras e de palavras desconhecidas ou fonologicamente complexas e b) dislexia lexical, com diminuição da fluência de leitura e dificuldades para ler palavras irregulares (abundantes em inglês). 

Uma maneira de unificar essas concepções seria postular a existência de um construto mais amplo e de alto nível denominado "processamento fonológico", o qual desempenharia um papel importante na alfabetização e cujo comprometimento explicaria a dislexia. Os processos fonológicos envolvidos são a consciência fonêmica, o acesso lexical rápido à forma fonológica das palavras de memória fonológica de trabalho.

A memória fonológica de curto-prazo é importante porque permite a recodificação fonológica, o mecanismo pelo qual a criança passa a se auto-ensinar a ler uma vez que tenha apreendido o princípio alfabético de correlação grafema-fonema e descubra que pode generalizá-lo de um item para outro. Para estabelecer e automatizar conexões grafema-fonema para palavras novas a criança precisa segmentá-las, representar os fonemas constituintes na memória fonológica de curto-prazo e sintetizá-los em uma nova seqüência correspondente à forma fonológica da palavra lida. A hipótese de recodificação fonológica constitui, ao meu ver, um dos desenvolvimentos mais sofisticados da teoria fonológica. 

O problema dessa teoria é que ela contextualiza os processos em um nível muito cognitivo, muito elevado ou ˜top-down˜. Com isso perde poder explicativo causal. A chamada "teoria" fonológica tem um caráter mais descritivo do que explicativo. Ela não consegue explicar como os mecanismos lingüísticos envolvidos dependem dos mecanismos neurais subjacentes.

A alternativa para a teoria fonológica é ilustrada pelas chamadas teorias bottom-up ou de baixo nível. As teorias bottom-up pressupõem que as dificuldades com a correlação grafema-fonema ou com o resgate automatizado das formas fonológicas das palavras a partir das suas representações ortográficas derivam de alguma disfunção neural, caracterizável idealmente em termos sináptico-neuronais, ou ao menos percepto-motores.

Um déficit mais básico no processamento temporal tem sido postulado como candidato. Segundo essa perspectiva, disfuções biofísicas de origem genética fariam com que a inércia das respostas neuronais aumentasse em casos de dislexia, dificultando o processamento de informação fonológica e sua associação com a informação visual. Sempre que um neurônio descarrega, ele entra em um período refratário, conseguindo emitir um novo potencial de ação apenas após algum tempo. Da mesma forma, na transmissão do impulso nervoso de um neurônio a outro existe um retardo sináptico, relacionado  ao período refratário dos neurônios e ao turn-over no metabolismo dos neurotransmissores e neuromoduladores envolvidos.

Segundo a hipótese do déficit no processamento temporal, a dislexia poderia ser relacionada a um aumento da inércia sináptico-neuronal prejudicando a análise do fluxo de fala nos seus fonemas constituintes e sua associação com os grafemas correspondentes. 

Três linhas principais de evidência apoiam a hipótese bottom-up. A primeira delas vem de estudos mostrando que pessoas com dislexia têm uma diminuição da resolução temporal na discriminação de fonemas. A discriminação de contrastes distintivos entre fonemas, principalmente entre consoantes tais como /b/ e /p/ que diferem apenas pelo vozeamento, dependem da habilidade de estabelecer distinções temporais muito rápidas de simultaneidade e ordem. A janela temporal necessária para estabelecer essas distinções é muito rápida mesmo. Da ordem de algumas poucas dezenas de milissegundos. Pessoas com dislexia podem necessitar até 200 ms para estabelecer essas distincões quanto à identidade e sucessividade da organização temporal dos fonemas na fala. Há evidências também de que o treinamento na discriminação temporal facilita a aquisição da leitura. Mas não se sabe qual é a proporção  indivíduos com dislexia apresenta esse tipo de problema.

Um segundo tipo de evidência é sugerido pela co-ocorrência de déficits no processamento visual em muitos indivíduos com dislexia (Stein, 2018). Muitos indivíduos com dislexia apresentam dificuldades com a percepção de contraste e com a percepção de movimentação coerente (vide Figura 1). 


Figura 1 - Tarefa de detecção de movimento coerente. Nessa tarefa, uma série de pontos piscam inicialmente de forma aleatória. O número de pontos que piscam sincronicamente vai aumentado progressivamente até que o indivíduo passa a ter a ilusão de que os pontos estão se movendo em uma dada direção. Pessoas com dislexia freqüentemente têm um aumento no limiar para detecção de movimento coerente.

As teorias de inércia temporal auditiva e visual são reforçadas por descobertas quanto aos sistemas neuronais subjacentes a essas habilidades de discriminação temporal. A discriminação de contraste e de movimento coerente depende de um subsistema visual implementado por neurônios magnocelulares. Trata-se de neurônios grandes que conduzem os impulsos nervosos a uma velocidade mais alta e que, justamente por isso, contribuem para discriminação de eventos temporais mais rápidos, quer seja na visão, que seja na audição. É importante salientar que esses neurônios magnocelulares foram descritos no sistema visual, mas estão presentes também no sistema auditivo. O mais interessante da história é que são justamente esses neurônios magnocelulares que parecem ser mais susceptíveis aos transtornos da migração neuronal e organização citoarquitetônica cortical muitas vezes observados na dislexia. 

A teoria do processamento visual magnocelular da dislexia fundamenta algumas intervenções tais como o uso de lentes coloridas. Alguns dos problemas com essas lentes coloridas dizem respeito  à péssima qualidade metodológica dos estudos, a uma falta de fundamentação funcional dos seus supostos efeitos, ao fato de que a maioria dos indivíduos que realiza esse tipo de tratamento não melhora e, finalmente, aos interesses comerciais escondidos por trás de uma terapia que está longe de ter se mostrado eficaz

A hipótese de um comprometimento seletivo do sistema magnocelular, quer seja auditivo ou visual, é enfraquecida também pelo fato de que nem todos os pacientes com dislexia apresentam esse tipo de problema e nem todos os indivíduos com esse tipo de problema têm dislexia. Ou seja, o comprometimento magnocelular não parece ser nem necessário nem suficiente. Também não se exclui a possibilidade de que os comprometimentos visuais sejam conseqüência e não causa dislexia. A perícia com a leitura modifica a percepção e atenção visual, bem como os padrões de motricidade ocular. 

A terceira linha de evidência vem do chamado efeito McGurk. O efeito McGurk explica o ventriloqüismo (vide Figura 2). Um sinal auditivo /ba/ pode ser percebido como /da/ se for pareado com uma imagem de uma boca articulando o som /ga/. Ou seja, o indivíduo o percebe o som como se ocupasse um ponto articulatório intermediário entre o som e a imagem.


Figura 2 - Efeito McGurk. Uma pessoa percebe o som /apa/ como se fosse /ata/ quando o mesmo é pareado com a imagem articulatória correspondente a /aka/.

Uma terceira vertente de hipótese bottom-up foi proposta por Leo  Blomert (vide Figura 3, Blomert, 2011, Blomert and Froyen, 2010) com base no efeito McGurk. Blomert propôs que a inércia sináptico-neural que causa a dislexia interfere com a integração multisensorial auditivo-verbal necessária para automatizar as correlações fonema-grafema. O locus de interferência foi identificado no sulco temporal superior (STS) do hemisfério esquerdo.


Figura 3 - Leo Blomert (1952-2012), Universidade de Maastricht

Blomert demonstrou os déficits de integração multisensorial auditivo-verbal na dislexia de forma muito engenhosa. Ele conseguiu observar uma espécie de efeito McGurk de interferência dos grafemas sobre a percepção de fonemas (vide Figura 4). 

A ferramento utilizada foi um potencial evocado chamado mismatch negativity (MMN). A mismatch negativity ocorre de forma automática, cerca de 200 ms após o estímulo, sempre que a uma série de estímulos idênticos seguir-se um desviante. P. ex., se o indivíduo estiver ouvindo uma série de sons graves PIP, PIP, PIP, PIP... e lá pelas aparecer um som agudo pip, será desencadeada uma MMN. A MMN é interpretada como um indice de discriminação perceptual automática.


Figura 4 - Mismatch negativity (MMN) (ver texto para descrição).


O paradigma experimental utilizado está ilustrado na Figura 5 (Blomert, 2011, Blomert and Froyen, 2010). Os autores demonstraram uma interferência dos estímulos ortográficos sobre os estímuos fonêmicos desencadeantes de uma MMN. 


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Figura 5 - Paradigma para a obtenção da MMN audiovisual. A) Apresentação auditiva: Após a apresentação de uma série de sons /a/, a ocorrência do som /o/ desencadeia uma MMN. B) Apresentação auditivo verbal: Após a apresentação de uma série de sons /a/ pareados com letras "a", a MMN desencadeada pela ocorrência súbita do som /o/ é intensificada pela discrepância entre /o/ e "a" e a amplitude da MMN aumenta (Blomert, 2011, Blomert and Froyen, 2010)


Adultos normais apresentam uma intensificação da MMN apenas quando os estímulos auditivos e visuais ocorrem simultaneamente (assincronia de 0 ms). Leitores normais de 11 anos apresentam o efeito apenas com assincronias temporais de 200 ms. Crianças de 8 anos e disléxicos de 11 anos não apresentam o efeito. Os resultados são interpretados como indicativos de um refinamento da integração temporal multisensorial à medida que o indivíduo automatiza a leitura. O mesmo não acontece em crianças com dislexia.

Os resultados de Blomert com a MMN na dislexia tornam-se mais interessantes ainda quando interpretados à luz do modelo de reciclagem cultural (Dehaene and Cohen, 2007). O  modeulo de reciclagem cultural propõe que a aprendizagem da leitura se baseia de processos epigenéticos (ou seja, dependentes de experiência e não programados geneticamente) que permitem o estabelecimento de conexões entre a área visual occípito-temporal látero-inferior esquerda responsável pela percepção de invariantes grafêmicos e a área do STS esquerdo proposta por Blomert como sítio da integração auditivo-visual multisensorial.  

A dislexia poderia surgir então a partir de variabilidade nos processos genético subjacentes ao estabelecimento e lateralização hemisférica dessas conexões (Brandler and Paracchini, 2014). 


REFERÊNCIAS

Blomert L. The neural signature of orthographic-phonological binding in successful and failing reading development. Neuroimage. 2011 Aug 1;57(3):695-703. doi: 10.1016/j.neuroimage.2010.11.003.

Blomert L, Froyen D. Multi-sensory learning and learning to read. Int J Psychophysiol. 2010 Sep;77(3):195-204. doi: 10.1016/j.ijpsycho.2010.06.025.

Brandler WM, Paracchini S. The genetic relationship between handedness and neurodevelopmental disorders. Trends Mol Med. 2014 Feb;20(2):83-90. doi: 10.1016/j.molmed.2013.10.008.

Dehaene S, Cohen L. Cultural recycling of cortical maps. Neuron. 2007 Oct 25;56(2):384-98.

Stein J. What is Developmental Dyslexia? Brain Sci. 2018 Feb 4;8(2). pii: E26. doi: 10.3390/brainsci8020026.

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