Depois da síndrome de Gerstmann, o TNVA é a entidade nosológica mais controvertida da neuropsicologia. A existência de um transtorno não-verbal de aprendizagem foi proposa por Johnson e Myklebust na década de 1960. O perfil neuropsicológico do TNVA foi o foco de pesquisa de Byron Rourke durante mais de 30 anos.
O termo transtorno não-verbal de aprendizagem é aplicado às crianças com inteligência normal e dificuldades de aprendizagem escolar associadas a um perfil neuropsicológico específico, porém muito heterogêno.
O quadro clínico de TNVA se caracterize tanto por processos psicológicos preservados quanto comprometidos. A inteligência das crianças com TNVA é normal, porém geralmente abaixo da média ou, muitas vezes, limítrofe. As habilidades verbais, principalmente o vocabulário e a memória verbal, são relativamente preservadas. Essas crianças podem ter dificuldades iniciais na alfabetização, as quais são geralmente superadas. O maior problema é com a compreensão leitora.
As principais dificuldades dizem respeito a 1) incoordenação motora ou dispraxia do desenvolvimento, traduzindo-se em dificuldades com a motricidade ampla e fina e em letra feia (disgrafia), 2) dificuldades com o esquema corporal, tais como gnosias digitais e reconhecimento direita-esquerda, 3) dificuldades visoespaciais e visoconstrutivas, relacionadas ao desenho, montagem, orientação geográfica, 4) dificuldades com a matemática (discalculia), 5) dificuldades para fazer inferências não-verbais e, portanto, aprender com a experiência.
As dificuldades para fazer inferências não-verbais fazem com que esses meninos sejam pouco intuitivos, tendo dificuldades em aprender com a experiência ou learning by doing. As crianças com TNVA aprendem melhor através da instrução verbal explícita. Ou seja, as estratégias pedagógicas construtivistas baseadas na intuição, experiência, descoberta, colaboração social etc. são perniciosas para essas crianças.
As dificuldades com a inferências não-verbais podem estar relacionadas também a outras características do TNVA, tais como 6) dificuldades com a compreensão leitora e 7) dificuldades sócio-emocionais e sócio-cognitivas.
As crianças com TNVA dominam a mecânica da lectoescrita (leitura de palavras isoladas e ortografia) mas têm muitas dificuldades com a interpretação de textos.
As dificuldadades sócio-emocionais e sócio-cognitivas presentes no TNVA constituem um dos temas mais controvertidos. Uma corrente em psiquiatria considera que o TNVA consiste apenas de uma variante, mais leve, no espectro autista.
Os indivíduos com TNVA podem ser descritos como socialmente desajeitados. Têm dificuldades para entender o impacto que seu comportamento causa nos outros. Podem ser tímidos ou inibidos. Outras vezes exibem uma extroversão pueril e comportamentos inadequados. Freqüentemente são vítimas de bullying. A maior dificuldade na diferenciação em relação ao autismo se coloca quando aparecem dificuldades com a teoria da mente. Mas as crianças com TNVA não apresentam a indiferença ou isolamenteosocial que caracteriza um grupo importante de indivíduos com autismo.
O diagnóstico diferencial com transtornos do espectro autista pode ser bem difícil. Psicometricamente grupos de indivíduos com TNVA podem ser diferenciados de grupos com autismo pela maior variabilidade e ausência de sistematicidade nessa última condição.
A experiêcia cliníca indica que, em algumas crianças, não sei exatamente quantas, é possível determinar que o indivíduo tem TNVA e não tem autismo. Isso acontece, p. ex., no caso de síndromes genéticas tais como Turner, Williams-Beuren e 22q11.2. Essas condições são um fator de risco para autismo, porém um grande número de indivíduos com essas síndromes apresenta um quadro bem típico de TNVA sem autismo. E isso é clinicamente perceptível.
Uma das contribuições mais importantes de Rourke para o estudo do TNVA foi o modelo da substância branca. De acordo com Rourke, o quadro clinico do TNVA é explicado pelo fato de que as alterações patológicas comprometem preferencialmente as fibras profundas de substância branca, responsáveis pela integração inter-hemisférica e intra-hemisférica regional. As fibras mais superficiais, justa-corticais, são poupadas. Isso explica o comprometimento maior das funções holísticas, relacionadas ao hemisfério direito, que possoi mais conexões profundas e de longa distância. Por outro lado, as funções analíticas, tais como fonologia e sintaxe, mais relacionadas ao hemisfério esquerdo, são preservadas. Não existem estudos mais atuais examinando essa hipótese com os métodos de neuroimagem da conectividade estrutural.
O TNVA não é aceito como uma entidade nosológica pela classificação psiquiátrica do sistema CID e do sistema DSM. As razões para isso são várias. Já foi discutida acima a dificuldade de diferenciar o TNVA do espectro autista e a hipótese de que se trate de uma variante do espectro autista. Outra dificuldade advém do fato de que o TNVA é uma entidade definida psicometricamente e os transtornos psiquiátricos são todos caracterizados fenomenologicamente. Inicialmente o TNVA era diagnostica através de uma discrepância entre um QI Verbal desproporcionalmente maior em relação ao QI de Execução. Mas esse critério somente se aplica a 30% dos indivíduos com TNVA.
Uma outra dificuldade se relaciona à heterogeneidade do quadro clinico. Realmente, o TNVA se apresenta de forma muito variável, na maioria das vezes de forma fragmentária, dificultando seu reconhecimento. Mas isso é da vida. A variabilidade inter-individual é o fenômeno biológico por excelência e caracteriza todas as entidades clinicas. Não existem sintomas patognomômicos e os quadros ditos "típicos" são sempre mais a exceção do que a regra. Se todos os pacientes fossem "típicos", o diagnóstico não seria uma arte. De mais a mais, um exame crítico das entidades nosológicas atualmente aceitas mostra que as mesmas se caracterizam por uma heterogeneidade de manifestações ao menos igual ,senão maior do que aquela observada no TNVA. Sem falar na comorbidade, a praga diagnóstica que assola a nosologia categorial.
A heterogeneidade clinica do TNVA não é menor do que aquela observada em duas condições nosologicamente aceitas e "concorrentes", o autismo e o transtorno do desenvolvimento da coordenação motora (TDC). A assinatura neuropsicológica do autismo é a variabilidade. As manifestações variam tanto quantitativa quanto qualitativamente. P. ex., um grande número de indivíduos com autismo tem comprometimentos da linguagem. Mas em outros a linguagem está preservada e as dificuldades maiores são visoespaciais. Adicionalmente alguns autistas têm muita dificuldade com a inteligência lógico-matemática. Outros são gênios da matemática.
O mesmo se aplica ao TDC. É uma raridade encontrar crianças cujas dificuldades se caracterizam apenas por probemas motores. Todas apresentam dificuldades também com a cognição, emocionalidade e comportamento. Adicionalmente a incoordenação motora é uma característica presente em praticamente todos os transtornos do neurodesenvolvimento.
Por vezes se tem a impressão de que o rótulo diagnóstico aplicado depende da especialidade do examinador. Neuropsicólogos falam em TNVA, psiquiatras em autismo, neurologistas em síndrome de Gerstmann do desenvolvimento, fonoaudiólogos em transtorno semântico-pragmático da linguagem e, finalmente, terapeutas ocupacionais utilizam a categoria TDC. Todas essas denominações apresentam semelhanças e diferenças, sobreposições e disjunções, sugerindo que o fenômeno é bem mais complexo do que a nossa vã filosofia desconfia. Talvez estejamos seguindo pistas completamente erradas.
A importância do diagnóstico de TNVA se reflete tanto na etiologia quanto no tratamento. Um perfil de TNVA é um achado comum em diversas síndromes e doenças, não-genéticas e genéticas. A síndrome fetal alcoólica freqüentemente compromete a substância branca, principalmente o corpo caloso. Nesses casos pode haver dificuldades sugestivas de um TNVA, na presença de outros problemas, tais como hiperatividade e dificuldades com a mecânica da lectoescrita.
As principais síndromes genéticas com grande incidência de TNVA são as síndromes de Turner, Williams-Beuren, microdeleção de 22q11.2 (velocardiofacial), sítio frágil do X em meninas, hidrocefalia obstrutiva precocemente tratatada etc. A probabilidade de um perfil tipo TNVA aumenta com a inteligência. Quando o comprometimento do fator g é preponderante, não se caracteriza um TNVA.
Todas essas síndromes se caracterizam por um comprometimento saliente da substância branca profunda, afetando a conectividade intra-hemisférica regional e inter-hemisférica. Por outro lado, a leucodistrofia metacromática é um erro inato de metabolismo no qual o curso clinico inicial também caracteriza um TNVA. Um defeito enzimático leva a uma degradação progressiva da mielina, comprometendo principalmente as fibras profundas, de longa distância, e poupando as fibrais justa-corticais, de curta distância. Os dados neuropatológicos são portanto concordantes com o modelo da substância branca proposto por Rourke.
Entretanto, a principal implicação do diagnóstico de TNVA diz respeito ao tratamento. As famílias e professores ficam muitas vezes perplexos frente às dificuldades graves e aparentemente inexplicáveis de aprendizagem apresentadas por muitas crianças que não têm deficiência intelectual. A psicoeducação sobre a natureza das dificuldades têm um efeito extremamente positivo. Mas a principal conseqüência diz respeito à educação. As crianças com TNVA se beneficiam de métodos mais tradicionais baseados na instrução verbal. A experimentação pedagógica baseada no construtivismo e idéias assemelhadas é veneno para esses indivíduos.
Indicação bibliográfica
Cornoldi, C., Mammarella, I. C. & Fine, J. G. (2016). Nonverbal learning disabilities. New York: Guilford.
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