A educação é um terreno minado filosofica e politicamente. Não faltam teorias concorrentes, disputas e animosidades. Como se orientar e por que são importantes essas definições político-filosóficas?
A importância é prática. A pedagogia é uma disciplina aplicada e as concepções filosóficas e políticas dos professores orientam sua práxis. Isso se manifesta de diversas maneiras, uma das mais escruciantes é o atual debate sobre o programa Escola sem Partido.
As questões subjacentes dizem respeito a se os professores têm liberdade para propugnar em sala de aula suas convicções ideológicas, ou se devem ser mais contidos e ponderados, não usurpando as atribuições parentais. Vejam que a minha própria escolha do vocabulário não é neutra, denotando explicitamente minhas posições políticas (Capaverde et al., 2018).
A educação não é uma ciência neutra. Não existe grau zero da educação. A educação pressupõe a transmissão de conhecimentos, hábitos e valores. É uma ciência aplicada, uma arte (James, 1899/1983).
Os neuropsicólogos atendem crianças e adolescentes com dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem. A maioria dos encaminhamentos vem das escolas. As professoras percebem que o jovem, por alguma razão, não está correspondendo às expectativas.
O mister do neuropsicólogo é identificar as razões pelas quais o jovem está enfrentando dificuldades. O máximo que o neuropsicólogo pode fazer é identificar fatores de risco, sopesar sua importância relativa e fazer um juizo quanto à estratégia de intervenção mais propícia.
Os fatores de risco podem estar relacionados à criança, à família ou à professora e escola. O diagnóstico neuropsicológico não se restringe a observações do comportamento ou aplicação de testes. O diagnóstico neuropsicológico envolve um processo mais amplo de coleta de informações sobre o desenvolvimento da criança e seu contexto, com o intuito de construir uma "biografia neuropsicológica".
Na maioria das vezes, não é possível fazer inferências causais diretas em clínica. O máximo que se consegue é identificar fatores de risco e integrá-los de forma coerente à biografia do cliente, procurando interpretá-los de forma pessoal e socialmente aceitável, com o intuito de orientar intervenções que resultem em benefícios palpáveis.
O diagnóstico neuropsicológico é uma posição privilegiada de observação que exige muito tato e uma ética rigorosa. A razão é simples. O diagnóstico neuropsicológico pode ser considerado como um controle de qualidade da educação recebida na família e na escola.
O processo diagnóstico é muito delicado porque invade a intimidade das pessoas. Podem ser encontradas dificuldades com a criança, como p. ex., transtornos do desenvolvimento, de aprendizagem, psiquiátricos, traços específicos de personalidade etc. Dificuldades podem também ser encontradas na família, como p. ex., práticas disciplinares inconsistentes, negligência, maus tratos, problemas de saúde mental nos pais, conflito conjugal, dificuldades financeiras etc.
Mas dificuldades podem ser encontradas também no que diz respeito à professora ou à escola. P. ex., as características pessoais da professora são muito importantes. A experiência mostra que as crianças com dificuldades são muito sensíveis à qualidade da "ensinagem" que recebem.
Mas além da formação, interesse e carinho das professoras, o sistema educacional como um todo também importa. São notórias as deficiências do sistema educacional brasileiro.
Um dos problemas que eu identifico diz respeito à filosofia educacional que orienta a formação e prática dos professores. As abordagens contemporâneas são tributárias das concepções românticas de Rousseau (1762/1979) sobre educação (Hirsch, 2006), atribuindo pouco valor ao conhecimento, instrução e autoridade. Ao invés disso são favorecidas a aprendizagem por descoberta e colaboração, a iniciativa e subjetividade do aluno e a dissolução dos vínculos hierárquicos professor-aluno e pais-criança.
Esse aqui é o Rousseau, o pai da desgraceira filosófico-pedagógica romântica que atormenta professores e alunos até os nossos dias. As intenções são sempre as melhores do mundo, mas as conseqüências práticas para as crianças pobres e/ou com dificuldades cognitivas são desastrosas.
Esse aqui é o Rousseau, o pai da desgraceira filosófico-pedagógica romântica que atormenta professores e alunos até os nossos dias. As intenções são sempre as melhores do mundo, mas as conseqüências práticas para as crianças pobres e/ou com dificuldades cognitivas são desastrosas.
As pesquisas (Hattie, 2009) e a experiência pessoal sugerem que a prática derivada dessa filosofia é pouco eficiente, podendo até mesmo ser prejudicial aos alunos que apresentam algum tipo de carência sócio-cultural ou dificuldade cognitiva (Hirsch, 2006, Murray, 2008, Sowell 1992/2010). Para melhor compreender a dimensão do problema, é preciso explicitar a formulação das diversas teorias.
Como foi mencionado acima, a filosofia educacional é um campo de batalha, um terreno minado. Mayer (2004) chamou atenção para a renitência das concepções românticas em educação, para sua falta de embasamento evidencial, e ao mesmo tempo para a recorrência com que são apresentadas com novos nomes. Abundam as diferentes denominações, tais como progressivismo, construtivismo, sócio-construtivismo, aprendizagem por descoberta, aprendizagem ativa, aprendizagem crítica, contextualismo, aprendizagem situada etc. Sempre que uma corrente romântica se desgasta, ela é paulatinamente reapresentada através de um novo rótulo (Mayer, 2004).
As discussões entre as diversas correntes teóricas são intermináveis, Muitas vezes se tem a impressão de que acontece com a pedagogia romântica a mesma coisa que acontece com o socialismo. Sempre que essa abordagem fracassa, a responsabilidade é atribuída à falta ou inadequação de implementação. O mesmo que acontece com o socialismo. Sempre que o socialismo fracassa, o problema é atribuído à implementação. O problema sempre é com o "socialismo real" e não com o "socialismo ideal".
É crescente na pedagogia a insatisfação com essa filosofia romântica. Os resultados de pesquisa dos últimos cinqüenta anos indicam, claramente, que algumas práticas do ensino considerado tradicional têm maior fundamentação empírica na psicologia cognitiva e comportamental do que as pressuposições românticas (Ashman, 2018, Christodoulou, 2014, de Bruyckere et al.,2015, Didau, 2015, Enkvist, 2011, 2014, Hattie, 2009, Hirsch, 2006, Murray, 2008, Sweller et al., 2011, Willingham, 2009, 2012, 2017).
O terreno é minado, e a própria escolha de termos é objeto de crítica. Muitas vezes, as disscussões assumem um caráter bizantino. P. ex., se um determinado autor ou prática é representativo ou não de determinada corrente de pensamento (Massabni e Ravagnani, 2008). Os próprios professores relatam insegurança e confusão quanto a suas concepções teóricas (Carraro e Andrade, 2009).
As discussões podem se fixar em detalhes e perde-se a visão do todo. Hirsch (2006) recomenda que se fale sobre filosofia romântica da educação. Recentemente, tem se difundido na internet a oposição entre progressismo e tradicionalismo ou entre progs vs. trads (Old, 2017). Uma maneira de compreender melhor o panorama é considerar as perspectivas da psicologia do desenvolvimento que apoia as diversas filosofias educacionais concorrentes.
De onde vêm as teorias que definem as diferentes filosofias educacionais? Os livros de psicologia escolar geralmente distinguem três tipos principais de teorias sobre a aprendizagem: behaviorismo, cognitivismo (no sentido de processamento de informação) e construtivismo (Moreno, 2009).
Essa prática é justificada a partir de uma análise meta-teórica conduzida por Dixon e Lerner (1992). Dixon e Lerner compararam entre si as diversas correntes teóricas disponíveis na psicologia do desenvolvimento, identificando suas pressuposições indemonstráveis. Os autores sugerem que é possível contrapor as teorias mecanicistas (como o behaviorismo e o cognitivismo) às teorias holístico-organísmicas (como o construtivismo e o contextualismo).
As teorias mecanicistas podem também ser chamadas, derrogatoriamente, de "positivistas", em função da sua ênfase na mensuração e métodos analíticos, no teste de hipóteses. Segundo Dixon e Lerner (1992) nem o behaviorismo ou o cognitivismo se preocupam muito com o conceito de indivíduo. O behaviorismo foca mais o ambiente e o cognitivismo os mecanismos (cognitivos) internos. O behaviorismo se concentra na elucidação de relações entre o comportamento e suas conseqüências, sendo extremamente útil na formulação de estratégias motivacionais e disciplinares (Vargas, 2009). O objetivo do cognitivismo é construir um modelo de "aparelho psíquico" que oriente de forma eficaz a prática dos professores na transmissão de conhecimento (Willingham, 2009, 2017).
As correntes organísmico-contextualistas, por sua vez, enfatizam a individualidade, a contextualização do comportamento e a interação de múltiplos níveis de análise. Segundo essa proposta, o pensamento de Piaget enfatiza a dimensão organ'ísmica enquanto Vygotsky enfatiza a dimensao contextual (vide Dixon e Lerner, 1992). O indivíduo o ambiente são concebidos como um todo. O indivíduo um agente em interação com o ambiente. O comportametno e a vivência subjetiva são adaptativos e não podem ser investigados independentemente do seu contexto (James 1890/2007). O desenvolvimento (e a aprendizagem portanto) é concebido como um processo dinâmico dotado de uma regularidade própria e submetido a múltiplas influências. A consideração do todo exige o emprego de métodos qualitativos de observação e interpretação.
James (1899/1983) advertiu que não é possível extrair diretamente implicações pedagógicas a partir de teorias psicológicas. Um exame, entretanto, das diversas concepções pedagógicas ilustra o modo como as diversas filosofias educacionais são iluminadas, ainda que indiretamente, por essas concepções psicológicas. (Além, obviamente, de uma série de considerações epistemológicas, metodológicas, éticas e políticas.)
Como reduzir a complexidade desse campo minado, de forma a derivar as implicações práticas que importam? O pedagogo britânico Andrew Old mantém um blog chamado de Scenes from the Battlegound. Teaching in British Schools. Em um post de 2017, Old analisou o conceito de progressismo em contraposição ao tradicionalismo educacional.
Esse aqui é o Andrew Old. Ele prefere ser chamado de Old Andrew. Por que será? O Old Andrew é professor em Coventry e mantém um blog genial chamado Scenes from the Battleground. Teaching in English Schools. Bem que eu gostaria de estudar com um cara com toda essa bossa.
Esse aqui é o Andrew Old. Ele prefere ser chamado de Old Andrew. Por que será? O Old Andrew é professor em Coventry e mantém um blog genial chamado Scenes from the Battleground. Teaching in English Schools. Bem que eu gostaria de estudar com um cara com toda essa bossa.
DEFINIÇÃO DE PROGRESSISMO
A definição de Old se baseia em divergências quanto à importância do conteúdo, disciplina e métodos de ensino. Vou me permitir uma citação um pouco mais longa do que o habitual (com cerca de 1500 palavras), em função da clareza com que o autor sintetiza as diversas posições.
"Alguém é herdeiro dos progressistas se endossar quaisquer dos principais desacordos entre tradicionalistas e progressistas, ao invés de todos eles. Existem três áreas principais de disputa.
"Conteúdo. Os tradicionalistas acreditam que existe um corpo de conhecimentos e crenças - uma tradição - a ser transmitido e que os benefícios disso para o intelecto fornecem a justificativa para os sistemas educacionais. Os progressistas podem não negar isso como um todo, mas podem argumentar de diferentes maneiras, problematizando essa pressuposição.
"Alguns dos argumentos mais comuns são:
"Negar uma tradição compartilhada com base no individualismo (por exemplo, “todas as crianças são diferentes e precisam ou querem saber coisas diferentes”);
"Apresentar o ensino de uma tradição como opressivo ou tedioso;
"Negar uma tradição compartilhada com base n aidentidadade dos alunos (“meus alunos são falantes nativos de uma língua estrangeira / de classe trabalhadora / muçulmanos / revolucionários e, portanto, não valorizam ou não devem valorizar esse conhecimento);
"Identificar objetivos não acadêmicos alternativos para as instituições educacionais, como por exemplo. felicidade, empregabilidade, consciência política, socialização ou qualquer coisa que tenha mais a ver com a parentagem do que com o ensino;
"Identificar objetivos acadêmicos para a educação que são muito genéricos para exigir conhecimento específico, por exemplo: pensamento crítico, criatividade, independência ou resiliência;
"Afirmar que os filhos ou pais não querem esse tipo de educação e, portanto, não devem ser ensinados;
"Negar a importância da recordação ou memorização na aprendizagem;
"Afirmar que a mudança social, econômica ou tecnológica tornará o conhecimento tradicional obsoleto;
"Valorizar apenas conhecimentos que resultem da iniciativa dos alunos;
"Negar que alguém tenha autoridade para identificar a tradição a ser ensinada (“Quem é você para decidir o que meus alunos precisam saber?”).
"Autoridade: Esse último ponto nos leva a outro grande foco de disputa, o da autoridade do professor. Os tradicionalistas acreditam que os professores devem estar em posição de autoridade sobre os alunos. Isso significa que suas decisões profissionais são legítimas e obrigatórias para os estudantes, e que devem ter os meios para aplicar essas decisões. Muitos (mas não todos) progressistas contestam um ou ambos os aspectos disso. Os principais temas são:
"Autonomia. A tradição progressista enfatiza a importância das decisões da criança. Atividades que as crianças escolhem para si são mais valorizadas do que as escolhidas pelos professores. Muitas vezes os progressistas procuram tornar as escolas menos estruturadas, defendendo salas de aula abertas e interativas ou aulas não tradicionais. A retórica de crítica ao "modelo bancário de transmissão de conhecimento" e de formação de mão de obra ('factory schools') é uma característica do discurso progressista, bem como a defesa da 'aprendizagem independente';
"Motivação. Àquelas atividades que as crianças querem fazer, como brincar ou conversar com amigos, é atribuido um valor adicional. Aquelas atividades que mais claramente servem ao propósito do professor, são consideradas menos valiosas. Obviamente, há posições de compromisso aqui, mas uma ênfase na diversão e no engajamento em detrimento do rigor acadêmico é um tema chave progressista.
"Disciplina. Esta é provavelmente a principal linha divisória entre progressistas e tradicionalistas hoje. Os tradicionalistas não têm nenhum problema com a idéia de que as crianças devem obedecer ou se conformar, desde que isso sirva ao propósito educacional. Os professores têm o direito de estar no controle e fazer julgamentos morais sobre o bem de seus alunos. Os progressistas geralmente temem que o controle do professor seja muito coercivo ou mesmo cruel. Os progressistas são muito mais propensos a se opor a punições, e às vezes até a recompensas, concebendo essas medidas apenas como um mecanismo de controle e de negação da relevância resistência à autoridade. Os progressistas são muito mais propensos a endossar a idéia de que as regras devem ser flexíveis e que as regras devem ser negociadas, as crianças apaziguadas ou persuadidas ao invés vez de impor modelos de comportamento. Os progressistas são também mais propensos a argumentar que as regras devem ser estruturadas em função de valores vagamente definidos (por exemplo: "respeitar uns aos outros") do que em termos comportamentos específicos e asociados a um benefício prático (por exemplo: "andar do lado esquerdo no corredor").
"Opinião do aluno. Os progressistas geralmente favorecem tanto esforços formais de coletar e responder à opinião do aluno quanto incentivao informal aos alunos opinarem. Espera-se que os professores justifiquem suas decisões aos alunos e, muitas vezes, os persuadam em vez de exercer sua autoridade. Os alunos são encorajados a questionar seus professores e desafiar suas decisões e o desafio pode ser visto como normal ou aceitável. Os progressistas consideram que obter o lado do aluno da história é crucial, mesmo em questões disciplinares. Os progressistas podem parecer muito hostis aos professores que tentam impor sua agenda aos alunos. Os julgamentos morais do professor são considerados suspeitos e a identificação de alunos difíceis ou comportamentos desafiadores pode ser vista como “rotulação”. Alguns progressistas sentem-se desconfortáveis com a ideia de que as crianças sejam obrigadas a ficar quietas.
"Status. Os progressistas geralmente querem remover sinais externos da diferença de status entre alunos e professores. Portanto, eles são menos propensos a favorecer os uniformes escolares e mais favoráveis a que os professores chamando pelo primeiro nome.
"Métodos. Os métodos de ensino diferem entre progressistas e tradicionalistas. Os métodos de ensino são frequentemente vistos por aqueles que querem negar o debate como tudo o que importa para a argumentação. A versão simplista disso é simplesmente afirmar “tradicionalistas fazem X, progressistas fazem Y” e depois argumentar que, se você faz tanto X quanto Y, então o debate é irrelevante para você. No entanto, é o que você valoriza que é mais importante do que aquilo que você faz. E mesmo quando as pessoas negam a relevância de qualquer um dos debates que descrevi nas duas seções anteriores, seus métodos preferidos podem revelar o contrário. Grosso modo, o tradicionalismo valoriza a instrução explícita, a memorização e a prática. O progressivismo favorece o trabalho em grupo, a discussão entre os alunos, a aprendizagem por descoberta e a aprendizagem que é relevante para (ou imita) a “vida real”. Os valores importam mais do que métodos precisos e os métodos de ensino são apenas decisivos no caso de professores que afirmam não ser influenciadom pela ideologia, mas que demonstram uma preferência marcada por um tipo de ensino. Muitos progressistas simplesmente alegam que os métodos progressistas que usam funcionam e se recusam a reconhecer a filosofia que informou esse julgamento" (Old, 2017).
Obviamente, a definição proposta por Old pode ser criticada de inúmeras maneiras. A engenhosidade da sua definição reside no fato de que ela não requer que o progressista subscreva todas as pressuposições associadas a essa corrente. Isso é impossível, na prática. E, certamente, constitui a fonte da enorme confusão conceitual e disputas intermináveis. A definição de Old é mais frouxa e, portanto, mais interessante. Basta que a pessoa subscreva mais pressuposições progressistas do que tradicionalistas.
Mas como certificar-se de que os termos em que Old equacionou a discussão são relevantes? No post em que propõe sua definição, Old prossegue fazendo uma comparação das suas idéias com aquelas formuladas por John Dewey em 1938 (1938/1999, pp. 17-20).
Esse aqui é o John Dewey, o formulador da filosofia educacional progressista na primeira metade do Século XX. Suas idéias são perniciosas e o seu texto tão confuso ou mais do que o Paulo Freire.
Esse aqui é o John Dewey, o formulador da filosofia educacional progressista na primeira metade do Século XX. Suas idéias são perniciosas e o seu texto tão confuso ou mais do que o Paulo Freire.
Da mesma forma que Paulo Freire (2000), John Dewey é um autor famoso pela sua obscuridade, no mau sentido. É impressionante que eles tenham atigido a notoriedade que atingiram. Dewey, p. ex., não consegue usar de forma consistente termos específicos para cada um dos conceitos a que se refere. Isso cria uma mixórdia. O leitor é obrigado a "adivinhar" o sentido das suas palavras. O trecho de Dewey citado por Old está disponível na internet. A seguir, transcrevo em português o quê eu "adivinhei" do pensamento de Dewey. É preciso advertir que se trata de uma tradução muito pouco literal.
"A humanidade gosta de pensar em termos de extremos opostos. É inclinada a formular suas crenças em termos de alternativas 'ou... ou...', entre as quais não reconhecidas possibilidades intermediárias. Quando forçada a reconhecer que os extremos não podem ser postos em prática, ela ainda está inclinada a afirmar que a teoria está certa, mas que, quando se trata de assuntos práticos, as circunstâncias compelem a um compromisso. A filosofia educacional não é exceção. A história da teoria educacional é marcada pela oposição entre duas idéias. Por um lado a educação ('education') é considerada como um desenvolvimento de dentro para fora. A educação como 'formation', por outro lado, consiste de um movimento de fora para dentro. A educação (no primeiro sentido) se baseia nos dotes naturais. A educação (no segundo sentido) é um processo de superação das inclinações naturais, substituindo-as pelos hábitos adquiridos sob pressão externa.
"No que se refere aos assuntos práticos da escola, atualmente a oposição tende a assumir a forma de um contraste entre a educação tradicional e a progressista. Se as idéias subjacentes à educação tradicional forem formuladas de maneira ampla, sem as qualificações exigidas para uma declaração precisa, elas podem ser descritas da seguinte maneira: O foco da educação consiste em corpos de informação e de habilidades que foram elaboradas no passado; portanto, o principal objetivo da escola é transmitir esses conteúdos para a nova geração. No passado, também foram desenvolvidos padrões e regras de conduta. O treinamento moral consiste em formar hábitos de ação em conformidade com essas regras e padrões. Finalmente, o padrão geral de organização escolar (pelo qual me refiro às relações dos alunos uns com os outros e com os professores) transforma a escola uma espécie de instituição nitidamente segregada de outras instituições sociais. Represente na sua meente a sala de aula comum, seus cronogramas, esquemas de classificação, de exame e promoção, de regras e de ordem, e acho que você entenderá o que significa “padrão de organização”. Se, então, você contrastar essa imagem com aquilo que acontece na família, por exemplo, você apreciará o que significa a escola ser uma espécie de instituição nitidamente diferenciada de qualquer outra forma de organização social.
"As três características que acabamos de mencionar estabelecem os objetivos e métodos de instrução e disciplina. A meta ou objetivo principal é preparar os jovens para responsabilidades futuras e para o sucesso na vida, por meio da aquisição de corpos organizados de informação e habilidades relacionadas. Uma vez que o assunto, assim como os padrões de conduta apropriada, são transmitidos do passado, a atitude dos alunos deve, no geral, ser de docilidade, receptividade e obediência. Livros, especialmente livros didáticos, são os principais representantes do conhecimento e sabedoria do passado, enquanto os professores são os órgãos através dos quais os alunos são colocados em conexão efetiva com o material Os professores são os agentes através dos quais o sconhecimentos e habilidades são transmitidos e as regras de conduta reforçadas.
"Eu não fiz este breve resumo com o propósito de criticar a filosofia subjacente. A ascensão do que é chamado de nova educação e escolas progressistas é, por si só, um produto de descontentamento com a educação tradicional. Com efeito, a educação progressista resulta de uma crítica àeducação tradicional. Quando a crítica implícita à educação tradicional é explicitada, lê-se da seguinte forma:
"O esquema tradicional é, em essência, uma imposição de cima e de fora. Ele impõe métodos, assuntos e padrões, assuntos e métodos próprios dos adultos àqueles que estão apenas crescendo lentamente em direção à maturidade. A lacuna é tão grande que o assunto requerido, os métodos de aprender e de se comportar são estranhos às capacidades disponíveis aos jovens. Eles estão além do alcance da experiência que os jovens aprendizes já possuem. Consequentemente, eles devem ser impostos; ainda que bons professores usem artíficis para encobrir a imposição, de modo a aliviá-la de suas características obviamente brutais.
"Mas o abismo entre os produtos maduros ou adultos e a experiência e habilidades dos jovens é tão grande que o próprio contexto proíbe a participação ativa dos alunos no desenvolvimento do que é ensinado. O papel dos jovens é fazer e aprender, como era o papel dos 600 soldados que foram impelidos à Carga da Cavalaria Ligeira na Guerra da Criméia, e morreram. Aprender aqui significa adquirir aquilo que já está incorporado nos livros e nas cabeças dos mais velhos. Além disso, aquilo que é ensinado é considerado essencialmente estático. O conteúdo é ensinado como um produto acabado, com pouca atenção tanto para as formas em que foi originalmente construído quanto para as mudanças que certamente ocorrerão no futuro. A educação consiste, em grande medida, no produto cultural de sociedades que assumiram que o futuro será muito parecido com o passado. Ainda assim, essa concepção trandicional inspira a educação em uma sociedade onde a mudança é a regra, não a exceção.
"Se alguém tenta formular a filosofia da educação implícita nas práticas da nova educação, podemos, penso eu, descobrir certos princípios comuns em meio à variedade de escolas progressistas que existem atualmente. À imposição de cima são contrapostos a expressão e o cultivo da individualidade. À disciplina externa se opõe à atividade livre. À aprendizagem com textos e professores contrapõe-se a aprendizagem através da experiência. À aquisição de habilidades e técnicas isoladas por treinamento opõe-se a sua aquisição como meio de atingir fins relevantes para a vida imediata do aluno. À preparação para um futuro mais ou menos remoto opõe-se o aproveitamento máximo das oportunidades propiciadas pela vida atual. A objetivos e materiais estáticos se opõe o conhecimento de um mundo em mudança" (Dewey, 1938/1999, pp. 17-20).
O cotejo entre as definições propostas por Old e Dewey mostra claramente que ambas derivam de uma matriz comum. As nuances podem ser diferentes, mas a raiz é a mesma e remonta a Rousseau (1762/1979).
CONCLUSÕES
OK, tivemos essa trabalheira toda de revisar essa concepções filosóficas sobre educação. O que ganhamos com isso? Quais são as implicações neuropsicológicas?
Uma primeira ponto que deve ser considerado é que as aplicações pedagógicas derivadas de teorias mecanistas se caracterizam por um corpo cumulativo de evidências (Hattie, 2009, Vargas, 2009, Wilingham, 2009, 2012, 2017). Por outro lado, os adeptos das concepções organísmico-contextuais rejeitam os métodos científicos tradicionais de teste de hipóteses e acúmulo de evidências. Dessa forma não existe um corpo sistemático de evidências que apoie a eficácia das abordagens derivadas do progressismo. A própria noção de eficácia pode ser problematizada.
A ausência de evidências científicas produzidas por defensores do progressismo dificulta a comparação entre as abordagens. Mas isso não exime o neuropsicólogo de incluir no seu processo diagnóstico a filosofia educacional subjacente à educação que seu seu cliente está recebendo, procurando extrair conclusões sobre o quê funciona e sobre o quê não funciona em função do tipo de problema apresentado pelo cliente. Adicionalmente, o neuropsicólogo pode identificar e propor estratégias alternativas quando uma está se revelando pouco eficaz. Finalmente, a consideração da filosofia educacional subjacente de pais e professores ajudará o neuropsicólogo a identificar possíveis fontes de resistência às suas prescrições.
REFERÊNCIAS
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