Wednesday, September 27, 2006

Desenvolvimento epigenético: o self como mediador

Epigênese é o conceito de que o desenvolvimento biopsicossocial ocorre a partir de uma integração de influências ambientais e genéticas. O conceito de epigênese foi introduzido pelo geneticista escocês Waddington na década de 40 e se refere aos processos ontogenéticos que ocorrem após o repertório genético ter sido estabelecido. Ou seja, todo o desenvolvimento que ocorre depois ou em cima dos genes. Segundo a fórmula epigenética:

[inserir figura 1]

É importante observar que na fórmula epigenética, o fenótipo não se refere apenas às características somáticas, mas a todos os traços psicológicos, cognitivos, afetivos e comportamentais que são expressos fenotipicamente. O maior desafio para as ciências contemporâneas do desenvolvimento é construir modelos integrativos sobre os modos como as influências ambientais e genéticas interagem umas com as outras para originar o amálgama fenotípico.
Do ponto de vista psicológico, a relação entre genótipo e ambiente é mediada por uma instância representacional e reguladora denominada self. Uma concepção influente considera que o self é um modelo que o indivíduo constrói de si mesmo, em parte a partir de seus sentimentos e percepções corporais, e parcialmente também a partir do reflexos de si que ele observa no comportamento dos outros. O self tem uma raiz biológica, corporal e outra interativa, social. É possível supor que até um determinado momento no desenvolvimento humano não existe um self. Uma das primeiras manifestações comportamentais de um self é o auto-reconhecimento em um espelho. Do ponto de vista filogenético, o auto-reconhecimento só ocorre em grandes primatas, mas não em macacos. Antes que o self se forme o processo epigenético pode envolver uma interação direta entre genes e o ambiente.
A partir do momento, entretanto, em que se constitui um self, a interação entre as influências genéticas e ambientais passa a ser mediada por ele. Ou seja, o self é uma estrutura representacional e auto-reguladora que emerge quando o sistema cerebral-mental atinge um certo grau de complexidade. A partir do debut do self o indivíduo se reconhece como um agente, atribuindo-se das características de uma instância decisória, tais como reconhecimento de preferências e inclinações pessoais, um perfil de habilidades e limitações, uma volição, um livre-arbítrio, capacidade de previsão das conseqüência futuras dos diversos cursos de ação etc.
A função concorrente de diversas estruturas cerebrais se faz necessária para a construção de um self. As mais notáveis são o córtex prefrontal e o sistema hipocampal. A função do córtex prefrontal pode ser modelada em três aspectos principais. O córtex prefrontal dorsolateral está envolvido com a representação cognitiva dos valores e as habilidades de raciocínio lógico, planejamento, organização seqüencial do comportamento e sua regulação por metas projetas para o futuro. O córtex prefrontal medial monitoriza os estados mentais próprios e alheios. Finalmente, o córtex orbitofrontal em conexão com o sistema límbico representa on line os valores de reforçamento dos estímulos e suas modificações no tempo, auxiliando na adaptação do comportamento a contextos altamente variáveis.
Interagindo com áreas prefrontais, o sistema hipocampal é responsável pela estrutura narrativa do self. Uma das características mais distintivas do self humano é sua estrutura narrativa. Além das imagens corporais, de sentimentos e de conceitos, o self é formado por histórias que construímos ou que construíram a nosso respeito e que contamos para nós mesmos e para os outros. A construção de um discurso coerente sobre si mesmo requer, em primeiro lugar, uma estrutura lingüística discursiva, a qual é função do córtex prefrontal dorsolateral esquerdo. O segundo requisito é uma memória episódica. Ou seja, um sistema de memória que permita a construção de uma linha do tempo onde a sucessão e o contexto de ocorrência dos eventos é registrada e acessada.
Do ponto de vista social uma influência poderosa sobre a construção narrativa são as histórias que os pais e outros familiares contam para as crianças. A amnésia infantil impede o acesso consciente na memória aos eventos que antecedem a idade de três ou quatro anos. Uma hipótese influente é que a amnésia infantil decorre da imaturidade do sistema hipocâmpico-prefrontal. A partir do momento em que o self narrativo começa a funcionar, o discurso dos pais e outros familiares influentes pode se constituir em uma fonte importante de influência, na medida em que ajuda a suprir os lapsos e a produzir um discurso coerente.
Desta forma, tanto influências biológico-genéticas quanto influências sócio-ambientais atuam na construção do self. Mas, no momento, em que o self passa funcionar ele próprio se constitui em uma fonte de fluência, na medida em que funciona como uma instância decisória e reguladora. Do ponto de vista psicológico, a fórmula epigenética pode ser então reescrita:

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O processo de desenvolvimento pode ser considerado iterativo. Ou seja, em um determinado momento um determinado self interage com o ambiente, para, no momento seguinte, o self resultante desta interação anterior interagir com um ambiente, que por sua vez também se modifica constantemente de forma dinâmica.
Como construir modelos que abordem a interação entre os diversos tipos de fatores ou influências sobre o desenvolvimento. Uma das respostas possíveis está na genômica comportamental. No estudo longitudinal de Dunedin foi possível demonstrar que a experiência de maus tratos na infância se associa com diversos desfechos psicopatológicos na idade adulta jovem (vide A abordagem diferencial ao estudo do desenvolvimento humano). A partir dos dados de pesquisa foi possível construir um modelo multivariado de moderação. A experiência de maus tratos na adolescência se associa com comportamento antisocial na idade adulta jovem, mas esta associação é mais forte para homens cujo genótipo se caracteriza por um déficit no gene que codifica a enzima MAO-A (Caspi et al., 2002). Por outro lado, a experiência de maus tratos na infância também se associa com depressão maior na idade adulta jovem, mas a associação é mais forte em mulheres cujo genótipo se caracteriza pela presença do alelo de cadeia curto do gene transportador de serotonina (Caspi et al., 2003).

Os resultados quanto ao efeito de moderação genética das influências ambientais sobre os desfechos psicopatológicos podem ser interpretados em termos de um modelo de diátese-estresse. Somente os indivíduos que apresentam uma diátese, ou seja, uma predisposição genética correm maior risco de apresentar um certo desfecho psicopatológico. Mas nem todos os indivíduos que apresentam um determinado genótipo e que experienciam um fator de risco psicossocial como os maus tratos vão desenvolver o desfecho associado. A relação entre os fatores de risco, genéticos e ambientais, e os desfechos é probabilística. Variáveis mediadoras podem influenciar a relação entre os fatores de risco e os desfechos.
Do ponto de vista da psicopatologia do desenvolvimento, representações cognitivas, ou seja, aspectos do self, podem atuar como mediadores entre os fatores de risco e os desfechos, mais ou menos adaptativos (Dodge, 1993). Dodge e cols. (1990) demonstraram que crianças submetidas a maus tratos desenvolvem certos estilos de processamento de informação e crenças sobre si mesmos e o mundo, que favorecem o surgimento de interações agressivas. Tais crianças prestam mais atenção e processam preferencialmente os estímulos hostis no ambiente. Da mesma forma, em situações sociais ambíguas crianças previamente maltratadas tendem a interpretar as intenções do outro como hostis.
Levado às últimas conseqüências, o conceito de desenvolvimento epigenético só pode ser investigado em um programa de pesquisa com as seguintes características: a) análise multivariada, incorporando tanto modelos de interação moderadora quanto mediadora entre as variáveis; b) delineamentos interdisciplinares que incorporem simultaneamente metodologias psicossocias e genéticas, principalmente métodos de genotipagem (genômica comportamental).

Referências Bibliográficas
Caspi, A., McClay, J., Moffitt, T. E., Mill, J., Martin, J., Craig, I. W., Taylor, A. & Poulton, R. (2002). Role of the genotype in the cycle of violence in maltreated children. Science, 297, 851-854.
Caspi, A., Sugden, K., Moffitt, T. E., Taylor, A., Craig, I. W., Harrington, H., McClay, J., Mill, J., Martin, J., Braithwaite, A. & Poulton, R. (2002). Influence of life-stress in depression: moderation by a polymorphism in the 5-HTT gene. Science, 301, 386-389.
Dodge, K. A. (1993). Social-cognitive mechanisms in the development of conduct disorders and depression. Annual Review of Psychology, 44, 559-584.
Dodge, K. A., Bates, J. E. & Pettit, G. S. (1990). Mechanisms in the cycle of violence. Science, 250, 1678-1683.

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