Wednesday, September 27, 2006

O que é neuropsicologia cognitiva?

"Suppose we try to recall a forgotten name. The state of our consciousness is peculiar. There is a gap therein, but no mere gap. It is a gap that is intensely active. A sort of wraith of the name is in it; beckoning us in a given direction, making us at moments tingle with the sense of closeness and then letting us sink back without the longed for term. If wrong names are proposed to us, this singularly definite gap acts immediately so as to negate them. They do not fit into the mould. And the gap of one word does not feel like the gap of another, all empty of contents as both seem necessarily, when described as gaps".
William James (1890)
A citação de William James ilustra uma dissociação em que o indivíduo perde, temporariamente, o acesso à forma lexical de uma palavra, mas pode reter informações sobre outros aspectos da mesma, tais como a estrutura fonológica e a classe morfológica, mas principalmente o seu significado. O lapsus linguae normal ou o sintoma de anomia afásica consiste, portanto, em uma dissociação em que o indivíduo conhece o significado da palavra mas não tem acesso a sua forma lexical. A exploração sistemática das dissociações no desempenho cognitivo decorrentes de lesões cerebrais em termos de modelos de processamento de informação é uma das estratégias metodológicas mais características da neuropsicologia cognitiva. Adicionalmente, a neuropsicologia cognitiva se caracteriza por um conjunto específico de pressuposições e estratégias metodológicas.
A neuropsicologia cognitiva pode, então, ser definida como uma disciplina acadêmica que utiliza modelos de processamento de informação para analisar os déficits neuropsicológicos de pacientes com lesões ou disfunções cerebrais. Os objetivos são de dupla natureza. Por um lado, a neuropsicologia cognitiva utiliza os déficits neuropsicológicos como um instrumento heurístico, como „experiências da natureza“ para testar a validade de modelos de processamento de informação derivados de estudos experimentais em indivíduos neurologicamente íntegros ou de simulações em computador. Os dados obtidos com pacientes são então aplicados ao refinamento dos modelos de processamento de informação, através de novos estudos com indivíduos normais ou simulações de computador. Por outro lado, a neuropsicologia cognitiva procura investigar a utilidade que os modelos de processamento de informação podem ter no diagnóstico e esclarecimento dos mecanismos subjacentes aos déficits neuropsicológicos, de modo a orientar o processo de reabilitação.
Além de enfatizar o estudo de casos isolados, metodologicamente a neuropsicologia cognitiva se caracteriza por uma série de pressupostos, tais como a transparência, a modularidade e subtratividade. Mas, antes de abordar as questões metodológicas é preciso esclarecer o que é um modelo de processamento de informação. A neuropsicologia cognitiva é uma subdisciplina de uma área interdisciplinar mais ampla, a ciência cognitiva, a qual surgiu de uma confluência interdisciplinar a partir do pressuposto de que o cérebro pode ser comparado a um computador digital que processa informação. Até meados da década de 40 do Século XX já se dispunha de uma série de informações sobre a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso central, mas faltava uma teoria unificadora que lançasse luz sobre o aspecto funcional do cérebro. A resposta veio sob a forma da teoria do processamento de informação, ou seja, a idéia de que o cérebro, humano ou animal, pode ser caracterizado funcionalmente como um dispositivo biológico para o processamento de informação.
O que cérebro faz? Processa informação. O que é processar informação? Processar informação consiste em computar, ou seja, manipular algoritmicamente símbolos lógico-matemáticos. O pressuposto é que a função do cérebro pode ser descrita, em algum nível, como uma função computacional. Ou seja, como um algoritmo, um processo puramente sintático para a manipulação de símbolos que, quando executado na seqüência correta, permite atingir determinados resultados, os quais podem ser caracterizados como um comportamento “inteligente”. Modelos computacionais são então utilizados como uma estratégia para dissecar funcionalmente o que acontece dentro da caixa preta cerebral/mental. Na década de 30, Skinner lançou mão da estratégia de explorar sistematicamente apenas as relações entre estímulo, resposta e conseqüência, entre outras coisas porque não havia um bom modelo e ferramentas analíticas disponíveis para caracterizar de forma objetiva e quantificável o que o cérebro/mente faz.Como sabemos que um comportamento é inteligente? A operacionalização desta resposta veio sob a forma do teste de Turing. O matemático britânico Alan Turing idealizou um teste comportamental para identificar uma máquina que, eventualmente, exibisse comportamento inteligente. Um examinador humano senta na frente de um monitor-teclado. O monitor-teclado pode estar ligado a outro ser humano ou a uma máquina. O examinador humano precisa então descobrir se o que se esconde atrás do monitor é um outro ser humano ou apenas uma máquina. No dia em que um examinador humano for enganado por uma máquina, o comportamento de tal máquina será caracterizado como inteligente. Tanto quanto eu saiba, nenhum computador passou, até hoje, no teste de Turing. A vantagem do teste de Turing é sua definição comportamental, precisa, operacional, do que é inteligência. Suas principais desvantagens são, entre outras, o fato de não ser definida a partir de um construto teórico sobre o que é inteligência e a sua natureza antropomórfica. Isto é, a inteligência é definida tomando como referência o caso humano.O cérebro/mente pode então ser reduzido a alguma forma de dispositivo computacional? De forma alguma. Claro que o cérebro não é um computador. Um computador é uma maquininha inventada pelos seres humanos para realizar operações lógico-matemáticas de forma mais eficiente e rápida. O cérebro humano e animal é o resultado de um lento processo de evolução por seleção natural. Pressões de seleção na ecologia evolutiva de diferentes espécies contribuíram para o surgimento de um órgão complexo que, provavelmente, constitui-se em um agregado de estruturas adaptativas na resolução de certos problemas recorrentes enfrentados nos ambientes ancestrais. Não há qualquer garantia de que a descrição computacional seja a única, ou pelo menos, uma entre muitas estratégias válidas para descrever o funcionamento cerebral. Mas a descrição computacional funciona como um modelo que se reveste de valor heurístico e prático. A descrição computacional permite fazer e testar previsões que têm conseqüências práticas, aplicabilidade clínica e social, por exemplo. Ela tem feito e faz o conhecimento avançar, mesmo que, no final das contas, venha a se revelar errada em mais de um aspecto.
Existem basicamente dois tipos de modelos de processamento de informação ou arquiteturas cognitivas. A chamada inteligência artificial clássica utiliza modelos que trabalham com programação explícita, ou seja, cada passo computacional precisa ser pré-programado com detalhe. As operações são executadas em série, manipulando símbolos ou representações explícitas. Os sistemas clássicos apresentam capacidade limitada, na medida em que não conseguem ultrapassar determinados limites quanto à carga de informação processada. As arquiteturas clássicas são organizadas de forma modular. Módulos são algoritmos que executam determinadas operações, e apenas estas operações, de forma automática e mandatória, independentemente do seu conteúdo semântico e de forma que o indivíduo consciente não tem acesso aos detalhes do seu funcionamento. As arquiteturas modulares distinguem uma série de representações interligadas por processos de ativação, acesso e resgate, tais como input e output, memória de curto e de longo prazo, memória declarativa e episódica etc. Os dispositivos programados pelas regras da inteligência artificial clássica são muito bons em resolver problemas com os quais os seres humanos enfrentam enormes dificuldades, tais como a resolução de problemas lógico-matemáticos complexos. O tipo de problema complexo resolvido pelos sistemas clássicos pode ser caracterizado como problemas fechados, ou seja, problemas cujos termos são bem precisos, definidos de forma descontextualizada e que comportam apenas uma resposta correta.O outro tipo de arquitetura é representado pelos sistemas dinâmicos, dos quais a inteligência artificial conexionista é um exemplo. O sistema nervoso é comparado a uma rede. Processar informação neste caso, consiste em modificar os padrões de conectividade da rede. É como se o cérebro humano fosse constituído de bilhões de unidades ou „homenzinhos burros“. Cada um deles só sabe realizar algumas poucas operações. As quais podem ser caracterizadas como receber e integrar, matematicamente falando, um input, emitindo logo a seguir um output. Essas operações de input-integração-output são repetidas monótona e automaticamente pelos bilhões de unidades dos sistema e são essencialmente „burras“, no sentido de que são executadas de forma automática, mandatória e insensível ao contexto. Como o sistema é, entretanto, muito complexo, mecanismos de auto-organização são postos em jogo, os quais se caracterizam por uma dinâmica que leva à emergência de propriedades interessantes. As propriedades emergentes são resultado do funcionamento do sistema como um todo, ou de subsistemas dentro de um sistema maior, e não podem ser caracterizadas no nível infraordenado do funcionamento das unidades ou „homenzinhos burros“. O todo é mais do que a soma das partes.
Como o próprio nome diz, nos sistemas conexionistas, a ênfase recai sobre as sinapses ou conexões entre as unidades. Os sistemas conexionistas não utilizam programas explícitos. Tudo o que é programado é o tipo de input e de output e as possibilidades de interconexão entre as unidades. Para funcionar, o sistema não roda um programa, mas interage com o seu „ambiente“ e emite um output. O padrão de configurações sinápticas é então analisado e correlacionado com padrões de input-output. Uma regra simples define um modo para reforçar ou atribuir mais peso às configurações sinápticas correlacionadas com determinados padrões de input-output em detrimento de outras. Desta forma, o sistema vai „aprendendo“ a associar de modo dinâmico configurações têmporo-espaciais de ativação na rede com padrões de estímulo-resposta.O papel do programador nas redes conexionistas é bem mais restrito, comparativamente aos sistemas informacionais clássicos. Nas redes conexionistas o programador define: a) o número, organização e as possibilidades de interconexões das unidades; b) as características „biofísicas“ das unidades, ou seus padrões de integração estímulo-resposta; c) o tipo e a natureza física dos inputs e outputs; d) a regra de reforçamento, que corresponde ao „significado“ derivado da natureza dos estímulos e respostas. O comportamento interessante ou inteligente emerge da dinâmica do sistema aprendendo por tentativa e erro. É como se uma rede conexionista fosse um cérebro/organismo interagindo epigeneticamente com um ambiente, de modo que a estrutura das unidades e suas possibilidades de interconexão representam a carga genética e a regra de reforçamento representa as pressões de seleção ambiental.
As redes da inteligência artificial conexionista são muito boas em fazer algumas das coisas que os humanos fazem com facilidade e com os quais os sistemas clássicos encontram muita dificuldade. A principal habilidade é a capacidade de reconhecer padrões de categorizar. Alguns teóricos, como p. ex., Edelman, propõem que a capacidade de categorização é a habilidade mental fundamental, que funda e possibilidade toda sorte de atividade mental. Uma tarefa clássica de reconhecimento e discriminação de padrões é a leitura de diferentes caligrafias manuscritas, como feito por um computador de bolso. Outras propriedades interessantes características do desempenho das redes neurais dizem respeito a sua plasticidade e sensibilidade contextual e à capacidade de reconstruir padrões a partir de fragmentos.Uma das limitações enfrentadas pela abordagem conexionista diz respeito a uma versão do problema filosófico do homúnculo. Enquanto nos sistemas artificiais clássicos a sintaxe é explícita, os comportamentos interessantes das redes não se revestem de caráter explicativo, correspondendo a emergentes ou construtos, cujos mecanismos então precisam ser explicados. O comportamento da rede é, justamente, apenas uma instanciação do que precisa ser explicado: o comportamento inteligente. Tudo o que a rede mostra é que um sistema simples, com tais e tais especificações pode originar um comportamento interessante. O qual precisa então ser explicado. Ou seja, uma rede neural é uma instanciação física, um modelo simplificado do modo como intuitivamente se acredita poder funcionar o cérebro. Mas isto apenas transfere o problema da análise da emergência da inteligência nos organismos para a emergência da inteligência nas máquinas sem que verdadeiramente se esteja explicando o surgimento da inteligência nos seus detalhes lógico-matemáticos, se é que isto é possível. Criar-se-ia então um simulacro de inteligência e a redução do problema de explicar o fantasma no cérebro para explicar o fantasma na máquina. Tratando-se apenas de um simulacro, o comportamento da rede precisa ser tão investigado quanto o comportamento de um organismo. Só que a rede é um modelo bem mais simples. É homúnculo, mas homúnculo reduzido, simplificado, analiticamente mais acessível. O importante é não esquecer que este simulacro tem valor heurístico, uma vez que permite a testagem rápida e barata de hipóteses, além de aplicações práticas, podendo, potencialmente, funcionar como interface em várias aplicações humanas. As aplicações vão desde dispositivos de bolso para ler textos manuscritos e armazenar e classificar informações até biochips que poderiam ser implantados no cérebro para auxiliar na restituição funcional.Mas, talvez, a restrição mais séria da abordagem conexionista diga respeito a sua falta de conseqüências para a avaliação neuropsicológica. De uma forma ou de outra, a neuropsicologia se baseia no pressuposto de que as funções mentais são localizáveis em termos de regiões, áreas, ou circuitos cerebrais. Os estudos com neuroimagem funcional indicam que os circuitos cerebrais responsáveis pela maioria das funções mentais mais complexas se organizam de modo distribuído no cérebro, recrutando unidades em amplas regiões dispersas por estruturas corticais e subcorticais, tal como previsto pela abordagem conexionista. Entretanto, o diagnóstico neuropsicológico requer a identificação de dissociações no desempenho, ou seja, a caracterização de padrões sistemáticos de comprometimento e de preservação de desempenhos cognitivos. Dissociações estas que são, por sua vez, correlacionadas com localizações lesionais no cérebro físico, tal como visualizado pelos métodos de neuroimagem, ou em um sistema nervoso virtual, caracterizado como um conjunto de processos e representações sistemicamente organizados, ou modelo de processamento de informação. Esta pode ser a razão pela qual os modelos modulares são muito mais populares na neuropsicologia cognitiva do que os modelos dinâmicos e conexionistas.Os modelos conexionistas mostram que, muitas vezes, dissociações no desempenho, podem ser obtidas pela destruição aleatória de um certo número de unidades no sistema. Ou seja, dissociações não precisam, necessariamente, refletir o comprometimento seletivo e a preservação seletiva de módulos ou circuitos cerebrais. Ao invés de serem explicados como uma conseqüência direta do comprometimento ou preservação de circuitos cerebrais ou representações mentais relativamente autônomas e modularmente organizadas, nos sistemas conexionistas, os padrões de dissociação no desempenho são explicados como uma decorrência da dinâmica de funcionamento do sistema na tentativa de resolver certos problemas com características específicas.A teorização dinâmica não muda, essencialmente, a natureza do diagnóstico neuropsicológico que consiste da busca por padrões de dissociação no desempenho, ou seja, padrões de funções sistematicamente comprometidas e de funções sistematicamente preservadas. O que muda é a explicação quanto à natureza das dissociações. Enquanto nos sistemas clássicos, as dissociações são explicadas em função da organização supostamente modular do sistema, nos sistemas conexionistas as dissociações resultam das características de funcionamento de um sistema altamente integrado. plástico e contextualmente sensível. A natureza do problema, ou seja, o padrão de input-output e a regra de reforçamento explica, ao menos em parte, os padrões de dissociação observados ao nível da performance. Permanece, entretanto, o fato de que determinadas dissociações são observadas regularmente após determinadas lesões e não após lesões em outras localizações. Pode-se dizer, então, que a abordagem conexionista impõe algumas restrições quanto ao tipo de teorização ultra-localizacionista radical que poderia se inferir a partir da observação de dissociações. Poder-se-ia dizer, também, que a inteligência artificial conexionista apreende intuitivamente melhor o que se considera serem as características plásticas, contextualmente sensíveis e dinâmicas da atividade mental. Mas a inteligência artificial clássica e os sistemas modulares, ou pelo menos a caracterização de dissociações no desempenho cognitivo, ainda continuam sendo o feijão-com-arroz da neuropsicologia, cognitiva ou não cognitiva.
Agora é possível passar ao exame dos principais pressupostos da neuropsicologia cognitiva:
a) Transparência: A pressuposição de transparência diz respeito ao fato de que, de alguma maneira, o estudo do comportamento e do desempenho cognitivo de pessoas com lesões cerebrais pode ser utilizado como um instrumento heurístico para investigar a estrutura e o funcionamento da mente humana. Evidentemente, em um certo grau, isto deve ser possível. Toda a empreitada neuropsicológica consiste em uma aposta nesta possibilidade. Obviamente, também, este método tem limitações. A principal limitação é que as lesões cerebrais, ao menos em humanos, não podem ser planejadas, mas decorrem de doenças ou disfunções, constituindo assim experimentos da natureza. O tipo de evidência obtido em neuropsicologia é, portanto, de natureza puramente correlativa, limitando as possibilidades de fazer afirmações sobre relações de causa e efeito.Uma limitação mais sutil decorre, entretanto, ainda, da utilização de inferências a partir de experimentos da natureza para inferir sobre a estrutura funcional do cérebro-mente. Pode-se fazer uma analogia com duas situações. Na primeira situação, pega-se um objeto qualquer, como p. ex., uma mesa e o mesmo é desmontado em suas partes constituintes, utilizando-se uma chave de fenda ou qualquer outro instrumento apropriado para desmontar o objeto em seus componentes. Neste caso é possível afirmar que a estratégia de desmanche e de análise das peças constituintes pode fornecer indícios válidos quanto ao design do objeto. Suponha-se, entretanto, que ao invés de se utilizar uma chave de fende,simplesmente se destrua a mesa utilizando um machado. A partir das lascas assim obtidas, dificilmente será possível inferior o desenho original do objeto. O pressuposto de transparência equivale a decidir ser a primeira analogia, aquela em que o objeto é decoposto com um instrumento apropriado, a que se aplica no caso da neuropsicologia. Isto é, a aposta fundamental é que os mecanismos de decomposição funcional envolvidos nos sintomas neuropsicológicos de alguma forma são transparentes, permitindo vislumbrar a lógica de construção do sistema.
b) Modularidade: Existem vários tipos de modularidade mental, mas basicamente todas elas implicam o pressuposto de que as funções mentais são localizáveis no cérebro, sob a forma de programas, redes, circuitos etc. A natureza exata e os detalhes da estrutura dos módulos devem ser objeto de pesquisa empírica, a pressuposição fundamental é de que cada uma destas unidades modulares se especializa no processamento de um determinado tipo de informação, funciona de modo relativamente autônomo e também se pode se degradar funcionalmente de maneira relativamente independente de outras unidades. Módulos mentais/cerebrais específicos podem ter sido selecionados na evolução da espécie humana para resolver problemas específicos colocados pela ecologia do ambiente ancestral. O cérebro humano pode então ser concebido como um conjunto altamente integrado, sistemicamente estruturado, de módulos específicos de domínio, uma espécie de canivete suiço, na metáfora de Tooby e Cosmides.A pressuposição de que alguns sistemas cerebrais sejam modularmente organizados e passíveis, portanto, de uma análise cognitivo-neuropsicológica, não implica em que não haja a necessidade de integração ou processamento não-modular. Ao contrário, um dos maiores problemas decorrentes da organização modular do sistema é compreender como o mesmo funciona de forma integrada ou sistêmica, o chamado binding problem.
c) Subtratividade: A pressuposição de aditividade ou subtratividade significa que o funcionamento do cérebro lesionado equivale ao funcionamento do cérebro normal subtraído das funções que eram desepenhadas pela área destruída. Em tese, o pressuposto de subtratividade é falso. As evidências quanto à plasticidade sináptica indicam que o sistema tem alguma capacidade de remodelação funcional. Ou seja, após uma lesão o sistema parece procurar se reorganizar, tentando compensar ou substituir funcionalmente as áreas lesadas. Se um circuito integrado é retirado de um computador o mesmo deixa de funcionar. Dependendo do circuito neuronal que for danificado o cérebro continuará funcionando, o indivíduo continuará se comportando, porém de forma qualitativamente diferente.Quando um neuropsicológo analisa o comportamento de um paciente, o que observa não é o comportamento do cérebro normal subtraído da área lesada, mas sim o resultado de um processo complexo de modificações lesionais e restaurativas, as quais envolvem plasticidade sináptica, efeitos à distância, substituição funcional e compensações experienciais e comportamentais desenvolvidas pelo indivíduo em sua interação com o meio. O caráter holísticos foi sublinhado por diferentes autores clássicos. Von Monakow chamou atenção para a diaschisis ou efeitos a distância que contemporaneamente são compreendidos como efeitos trans-sinápticos. Goldstein sublinhava a natureza adaptativa dos sintomas neuropsicológicos, os quais são sempre compostos pelas tentativas do indivíduo e de seus familiares de continuar funcionando o melhor possível, dadas as circunstâncias.
d) Estudo de casos: A neuropsicologia cognitiva se notabilizou também por revalorizar o estudo de casos em neuropsicologia. A neuropsicologia debutou como área científica de investigação a partir da análise cuidadosa do padrão de funções comprometidas e preservadas em pacientes com lesões cerebrais, bem como da comparação entre os padrões de desempenho de pacientes com diferentes tipos ou localizações cerebrais. Os padrões de co-ocorrência dos diversos sintomas eram então categorizados em termos de síndromes e estas relacionadasA partir do final da década de 20 do século passado iniciou-se uma das principais contribuições da psicologia à neuropsicologia, ou seja, a introdução de métodos psicométricos de testagem. Foram desenvolvidas baterias de testes, validadas segundo um modelo psicométrico nomológico. Isto é, os testes eram validados e construídas normas de referência para a população saudável. A seguir eram realizados estudos comparando o perfil de desempenho dos indivíduos normais com pacientes cérebro-lesados, portadores de diversas síndromes neuropsicológicas. Durante essa fase psicométrica ou sindrômica da neuropsicologia, que se estendeu até meados dos anos 60, foram coletadas casuísticas imensas de pacientes com as mais diversas síndromes neuropsicológicas.
A partir de meados dos anos 50, entretanto, ficaram evidentes os limites da abordagem sindrômico-psicométrica. A validade localizatória, p. ex., das diversas síndromes é relativamente baixa. As probabilidades pós-teste de localização lesional quando um paciente apresenta uma dada síndrome neuropsicológica são da ordem de apenas 70%. As síndromes, por outro lado, nem sempre se manifestam de foram plena, ocorrendo dissociações entre os diversos sintomas componentes, o que dificulta a sua interpretação funcional em termos de mecanismos cognitivos subjacentes. Os estudos de grupos de pacientes caracterizam perfil de funções comprometidas e preservadas em termos de estatísticas descritivas de tendências centrais, ou seja, abstrações estatísticas cuja realidade psicológico nem sempre é aparente. Finalmente, a constatação de um paciente apresenta uma dada síndrome correlata de uma certa localização não constitui informação suficiente para orientar o processo de reabilitação.
A análise crítica das limitações da abordagem sindrômica em grupos de pacientes sugeriu um novo tipo de análise: o estudo de caso individual, com características quase-experimentais, em que os sintomas apresentados pelo paciente, bem como as habilidades preservadas são analisados em termos de um modelo de processamento de informação. Os modelos de processamento de informação são derivados dos estudos de indivíduos normais, de simulações em computadores, bem como da análise de outros casos clínicas e utilizam-se de caixas e flechas para simbolizar representações mentais e processos cognitivos, respectivamente. Os padrões de funções preservadas e comprometidas (dissociações de desempenho) funcionam como controles internos ao próprio caso estudado e a comparação entre diferentes pacientes proporciona controles externos.
O campo da neuropsicologia cognitiva é marcado historicamente por uma polêmica entre os ultracognitivistas que só admite o estudo de caso individual como evidência válida em neuropsicologia e os cognitivistas mais moderados, que adotam uma atitude conciliadora, não repudiando a análise de grupos de pacientes. Uma outra controvérsia diz respeito ao tipo de localização admitido. Os ultracognitivistas só estão preocupados com localizações „lesionais“ em modelos de processamento de informação, ou seja, localizações virtuais. Os pesquisadores mais moderados e sensatos consideram que o campo já está maduro suficiente para se aproximar da neurociência cognitiva e mapear os sistemas de processamento de informação em termos de circuitos ou redes neuronais cerebrais.
e) Dupla-dissociação: O padrão-ouro de evidência em neuropsicologia cognitiva é a dupla-dissociação. Uma dupla-dissociação é uma situação em que dois pacientes apresentam padrões especulares simétricos de funções comprometidas e preservadas. Um paciente apresenta um sintoma „a“ decorrente de uma lesão „A“, mas não apresenta o sintoma „b“ decorrente de uma lesão „B“, enquanto outro paciente aprsenta um sintoma „b“ decorrente de uma lesão „B“, mas não apresenta o sintoma „a“ decorrente da lesão „A“. Dois exemplos clássicos de dupla-dissociação foram descritos no que se refere às funções lingüísticas e mnemônicas. Pacientes com afasia de Broca apresentam um transtorno de programação sintática da frase e uma relativa preservação da compreensão sintática oral. Pacientes com afasia de Wernicke, por outro lado, apresentam uma fala fluente, com a sintaxe quase normal, mas evidenciam um padrão gravíssimo de comprometimento da compreensão oral.
No que se refere à memória, por outro lado, foi descoberto que pacientes com lesões bilaterais do lobo temporal medial podem apresentar um quadro grave de amnésia com preservação da aprendizagem procedimental. Pacientes com doenças degenerativas dos núcleos da base, por outro lado, raramente apresentam uma amnésia grave, mas apresentam dificuldades importantes com a aprendizagem procedimental.
A presença de uma dupla-dissociação é interpretada geralmente como evidência de uma organização modular do sistema mental/cerebral, uma vez que as dissociações entre funções preservadas e comprometidas sugerem um substrato anátomo-funcional parcialmente autônomo ou independente. Dados de simulações em redes neurais conexionistas indicam, entretanto, que duplas dissociações podem ser observadas no nível do desempenho em decorrência de modificações de parâmetros dinâmicos da ativação das redes. Ou seja, sem que necessariamente haja uma segregação anatômica entre loci funcionais que representam diferentes aspectos funcionais.
Conclusões
A neuropsicologia cognitiva consiste em um estilo bastante específico de praticar a neuropsicologia, o qual apresenta diversos pontos fortes fracos. Como principais pontos fortes é possível mencionar a abordagem idiográfica à avaliação neuropsicológica, fazendo com que a prática da neuropsicologia possa prescindir, até certo ponto, da existência de normas validadas de desempenho para a população normal. Os modelos neuropsicologia cognitiva proporcionam também uma interpretação intuitiva e plausível para os achados clínicos, fornecendo dados que são potencialmente relevantes para a reabilitação.
As principais limitações da abordagem cognitivo-neuropsicológica dizem respeito ao fato de que seus modelos não conseguem dar conta da natureza plástica, dinâmica e contextualmente sensível do comportamento humano. Uma dificuldade adicional é o fato de que os achados empíricos acumulados têm sugerido um fraccionamento crescente das funções mentais em uma multiplicidade de módulos ou sistemas relativametne autônomos sem que fique claro correlato anátomo-funcional para a maioria e sem que tenha sido estabelecido um critério epistemológico claro sobre o que é um módulo e como diferenciar um módulo real de um artefato.

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