A síndrome homônima foi descrita por Josef Gerstmann, um neurologista austríaco, na década de vinte. Na forma adquirida, em adultos, ela decorre de lesões do giro angular esquerdo, geralmente de etiologia vascular, e consiste de: 1) agnosia digital; 2) desorientação direita-esquerda; 3) acalculia; 4) agrafia. Um sintoma associado com bastante freqüência é a apraxia construtiva, a qual não é,entretanto, considerada parte da síndrome.A síndrome de Gerstmann é um assunto dos mais debatidos em neuropsicologia, por vários motivos. Em primeiro lugar, há dúvidas quanto a sua própria existência. Vários autores, como p. ex., Arthur Benton, chegaram a negar sua existência. Em um primeiro trabalho Benton buscou apresentar evidências empíricas contrárias a sua existência como entidade autônoma. Vinte anos depois ele publicou outro trabalho concedendo que na verdade a síndrome existe. Como em todas as síndromes, uma das dificuldades é representada pelas formas frustras. Ou seja, nem todos os pacientes apresentam todas as manifestações.
A outra questão importante diz respeito à relação funcional entre os sintomas constituintes da síndrome. Qual a relação entre agnosia digital, desorientação direita-esquerda e acalculia? A partir de uma perspectiva cognitivo-neuropsicológica é comum encontrarmos afirmações de que a existência de muitas síndromes é irrelevante, uma vez que poderiam decorrer apenas da co-localização das funções em uma determinada região do córtex, correspondendo ao território de irrigação de uma certa artéria. Ou seja, a associação entre os sintomas poderia ser fortuita. A co-ocorrência dos sintomas seria atribuída a um acidente anatômico e não a alguma espécie de vinculação funcional entre os mesmos.
Essa perspectiva me parece um grande absurdo. Por que? O motivo é simples. Acreditar que a co-ocorrência dos sintomas em uma síndrome pode ser atribuída a um “acidente anatômico” pressupõe um desacoplamento entre estrutura e função no sistema nervoso. Ou seja, vai contra tudo o que se sabe sobre fisiologia. Na fisiologia, pelo menos desde Claude Bernard, um dos princípios fundamentais é justamente o acoplamento estrutura-função.
O acoplamento estrutura-função constitui, p. ex., a base dos exames de neuroimagem funcional. Se uma determinada área é mais solicitada funcionalmente, então o aporte sangüíneo aumenta. Acreditar que duas ou mais áreas possam ser irrigadas pelo mesmo ramo terminal de uma artéria cerebral sem que estejam funcionalmente correlacionadas é um absurdo. Representa uma ignorância muito grande da fisiologia.
Os territórios de irrigação vascular são definidos, ao menos em parte, pelo estado de ativação do tecido cerebral. Se algumas áreas cerebrais tendem a ser ativadas conjuntamente, elas “puxarão” mais sangue juntas e, portanto, tenderão a serem irrigadas pela mesma artéria. Existem mecanismos de plasticidade neuronal (fatores de crescimento neural) e de angiogênese que são responsáveis por esse acoplamento funcional na ontogênese do organismo. O aforisma “neurons that fire together, wire together”, pode ser reformulado: “neurons that fire together, are irrigated together”. Essas idéias correspondem a uma perspectiva associacionista em que, ao menos em parte, a arquitetura das redes neuronais e da sua vascularização é determinada pelos padrões de atividade no sistema (plasticidade dependente de atividade).
A minha conclusão, portanto, é que deve haver uma conexão funcional muito íntima entre agnosia digital, desorientação direita-esquerda e acalculia. A partir de uma perspectiva piagetiana, poderíamos pressupor que para aprender a contar a criança se apóia em referencias concretos, como p. ex., as noções espaciais e corporais. O espaço é construído a partir de assimetrias corporais (direita-esquerda, frente-atrás, acima-abaixo), os dedos são referenciais concretos para a contagem etc.
Um terceiro aspecto diz respeito às formas do desenvolvimento da síndrome de Gerstmann descritas por Kinsbourne e Warrington na décda de 60. Ou seja, algumas crianças com dificuldades de aprendizagem escolar, principalmente discalculia, apresentam os outros sintomas da síndrome de Gerstmann. Mais recentemente dois autores indianos publicaram uma série de casos que correspondem à descrição da síndrome de Gerstmann do desenvolvimento. Muitos casos da forma “do desenvolvimento” da síndrome de Gerstmann apresentam manifestações associadas, tais como transtornos externalizantes do comportamento ou evidências eletrofisiológicas que sugerem disfunção do hemisfério direito, adicionando mais lenha à fogueira do debate sobre a lateralização lesional. Seria então a variante do desenvolvimento distante da variante adquirida do adulto?
Em resumo, diversas dificuldades são colocadas pela síndrome de Gerstmann: 1) os elementos constituintes da síndrome de Gerstmann são potencialmente dissociáveis, podendo ocorrer isoladamente, ou ocorrendo em formas frustras da síndrome, nas quais não se manifestam todos os sintomas constituintes; 2) a base comum para a associação ou dissociação entre os diversos sintomas constituintes não é de forma alguma clara; 3) existem dúvidas quanto à lateralização lesional e, eventualmente, quanto à existência de uma variante “do desenvolvimento”.
Mesmo assim, há argumentos teóricos importantes, a partir de uma perspectiva associacionista para acreditar que a associação entre os sintomas constituintes não deve ser fortuita e que a pesquisa por um modelo conceitual explicativo eventualmente será recompensada. Do ponto de vista empírico, por outro lado, não há estudos disponíveis que permitam descartar o valor localizatório da síndrome de Gerstmann, demonstrando que o mesmo é inferior ao de outras síndromes neuropsicológicas. Assim é possível concluir que, longe de estar encerrado o debate sobre a síndrome de Gerstmann não foi resolvido até o momento. E que, longe de constituir uma evidência contra a abordagem síndrômica em neuropsicologia, a síndrome de Gerstmann pode ser concebida como um belo exemplar das vantagens e desvantagens associadas com essa abordagem.
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