Sunday, June 16, 2013

Regras para citações bibliográficas

Tenho observado que alguns alunos apresentam dificuldades para captar as normas que regem a etiqueta das citações bibliográficas. Lendo textos de alunos, muitas vezes fico com a impressão de que o cara citou o primeiro trabalho em que leu um determinado assunto. Assim, à êsmo. No caso de alguns alunos é possível até mesmo reconstruir a cronologia das suas leituras. Como se a ordem em que o cara foi aprendendo as coisas tivesse qualquer relevância...

Não é assim que a coisa funciona. Um dos critérios que os referees usam para avaliar a qualidade de um trabalho científico diz respeito às citações. O estilo de citações pode ser muito revelador do conhecimento ou ignorância do autor. As citações em um texto científico não podem ser feitas a êsmo. Devem refletir a evolução e o estado atual de conhecimento de um dado tópico. E o conhecimento de que o autor dispõe.

A seguir vou descrever algumas regrinhas que eu uso. Não tenho pretensão a ser dono da verdade. Mas acho que estas regrinhas têm uma certa lógica.

Artigos originais em periódicos com revisão por pares
Sempre procurar citar artigos originais, publicados em periódicos indexados com revisão por pares e que, principalmente, tenham como objeto principal de estudo o fato que está sendo mencionado. O artigo original publicado em periódico indexado, revisado por pares e em inglês é o padrão-ouro da evidênccia científica. É melhor transacionar com moeda forte do que com moeda fraca. É sempre importante citar trabalhos cujo objetivo principal tenha sido a questão mencionada. Não citar coisas que outros autores apenas mencionam de passagem ou na discussão dos seus resultados.

Revisões literárias
Revisões literárias ou tradicionais não devem ser citadas. Este tipo de estudo têm finalidade apenas didática.  A utilidade das revisões tradicionais ou literárias é dar uma geral sobre um determinado assunto. São úteis como introdução. Como sua função é principalmente didática, não devem ser citadas em uma dissertação, tese ou artigo. O conhecimento adquirido a partir de artigos originais é fragmentário. Leva um tempo para montar o quebra-cabeça. As revisões são úteis para traçar uma visão geral. Mas as revisões sistemáticas e meta-análises são preferíveis.

Revisões sistemáticas e metanálises
Devem sempre ser citadas. As revisões sistemáticas e metanálises ocupam o mais alto patamar da evidência científica. Sempre que houver alguma revisão sistemática ou metanálise de um assunto é  conveniente citá-la. Este tipo de trabalho é altamente considerado e pode ser muito útil na organização das idéias. Estruturar a introdução de um trabalho em cima de uma revisão sistemática é uma ótima maneira de começar o negócio. As revisões sistemáticas proporcionam também uma acesso rápido e fácil a toda à literatura. Identificada uma revisão sistemática fica mais fácil a tarefa de revisão. Basta correr atrás dos trabalhos publicados posteriormente. Até o momento da publicação a revisão bibliográfica está resolvida. As revisões sistemáticas estruturam o conhecimento e fornecem parâmetros metodológicos. As metanálises estimam a magnitude dos efeitos, orientado a avaliação da significância teórica, prática, clinica de uma evidência dada.

Capítulos de livro
Muito cuidado com as citações de livros e capítulos de livros. Este tipo de literatura pode não ser tão facilmente acessivel. Se o leitor não dispõe da obra em sua biblioteca particular, precisa ir até a biblioteca da sua faculdade para conferir. Por vezes a obra pode não estar disponível na biblioteca mais próxima.  Se o leitor tiver que se esforçar muito para avaliar a validade ou fidedignidade de uma informação, ele vai ficar de má-vontade. É sempre melhor privilegiar artigos originais publicados em periódicos indexados e com revisão por pares. A indexação permite o fácil e rápido acesso. A revisão por pares é um selo de garantia. Uma razão adicional é que a informação contida em capitulos tende a ser menos atualizada do que a informação publicada em artigos. A vantagem dos capítulos é que os autores têm mais liberdade de especular, uma vez que os controles são menos rígidos do que no caso dos periódicos. Isto pode ser interessante para aprender. Mas, geralmente, não justifica citação.

Livros-texto
Não citar informações de livros-texto. Isto transmite a impressão de que o autor tem um conhecimento apenas superficial do assunto. Informações de livros-texto são permitidas quando se trata de fatos estabelecidos em outras áreas do conhecimento, mais remotas ao tópico do trabalho. Livros-texto devem ser, entretanto distinguidos dos clássicos. Citar os Principles of psychology do William James é chique. Citar um manual recente de psicologia cognitiva traduzido para o português é caipirice.

Relevância
Citar apenas trabalhos que representem algum tipo de contribuição relevante para uma determinado ponto que está sendo enfatizado. É um pecado muito grave citar o primeiro autor lido que discutiu a questão mencionada, às vezes apenas de passagem. O foco principal do trabalho citado tem que ser a questão que está sendo enfatizada. O trabalho citado precisa representar uma contribuição importante, no sentido de ter sido o primeiro a mostrar algo, ou o artigo que melhor controlou as variáveis confundidoras, ou fez alguma inovação metodológica ou conceitual, contribuindo assim para estabelecer um fato de forma mais sólida. Revisões sistemáticas e metanálises também são altamente relevantes e merecem se recitadas. 

Novidade
Os referees são enviesados para a novidade. Ao citar alguma coisa, é sempre recomendável que o autor se pergunte se esta é a contribuição mais recente disponível para a questão. Caso contrário, deve ser a primeira, ou aquela que se destacou pela excelência metodológica. Em algumas áreas do conhecimento a taxa de turn-over do conhecimento é mais lenta. Ou seja, não necessariamente os artigos mais recentes contêm novidades radicais em relação ao que foi publicado há mais tempo. Entretanto, é importante sempre ter em mente de que o referee pode ser alguém que atua em uma área com turn-over mais rápido. Neste caso ele vai dar tinta no trabalho. Vai achar que o autor está desatualizado. É bom recomendável não ter este telhado de vidro.

Afinidades eletivas
Existem regras para a citação. Mas a escolha das referências citadas depende também de fatores subjetivos. Os autores sempre preferem citar os amigos do que os não-amigos ou adversários. Isto é humano. Mas convém não abusar. O autor não pode transmitir a impressão de estar sendo muito enviesado na escolha das referências citadas. Pega mal. É melhor não dar bandeira dos próprios viéses.

Auto-citação
A auto-citação é um recurso interessante para aumentar o indíce H de um autor. Mas, novamente, é importante ter cuidado. A auto-citação pode despertar aversão do leitor e enviesá-lo contra o texto, diminuindo a sua aceitação. De novo, é melhor ser discreto, não demonstrar muito a própria vaidade. O profile não pode ser nem muito high nem muito low. Apenas na medida.

Língua nativa
Preferencialmente citar trabalhos redigidos em inglês. A regra é assim. Se o autor considera que o trabalho é bom, vai redigí-lo e publicá-lo em inglês, para atingir uma audiência maior. Se o autor considera que o trabalho é  bom, vai publicá-lo em um periódico indexado e revisado por pares, para aumentar a acessibilidade e para ganhar um selo de qualidade. Os trabalhos publicados em língua nativa são geralmente de qualidade inferior. P. ex., estudos com resultados negativos. Se o interesse for por estudos com resultados negativos, então é importante buscar sistematicamente trabalhos publicados nas línguas nativas dos autores. Citações em língua nativa são justificáveis, p. ex., quando se trata da adaptação e validação de um procedimento de teste para uma uma determinada língua, país etc. Também podem e devem ser citados trabalhos em língua nativa que abordem alguma questão  cultural ou sócio-econômico-demográfica específica. De um modo geral, publicações em língua nativa são o cemitério dos resultados de pesquisa. Ninguém dá bola. A razão é que o público alcançado geralmente é menor, tem uma qualificação inferior, a circulação dos periódicos não é adequada etc.

Precisão
As citações e referências devem ser corretas. Citações e referências trocadas, omissas ou erradas são inadmíssiveis. É causa de reprovação sumária. Na época dos bancos digitais e dos programas computacionais de administração de citações os erros não têm mais vez. São pecado mortal.

Timing
Um dos erros mais comuns cometidos pelos alunos é não pegar a referência na hora em que é citada. Isto é mortal. Muitas vezes o aluno marca com XXX ou outra marca qualquer e deixa para procurar depois. Isto é, realmente, mortal. Na maioria das vezes o cara esquece de procurar. Na hora em que vai revisar deixa passar. Na hora da revisão do texto muitos autores já estão com a paciência esgotada. Já revisaram o troço tantas vezes que não agüentam mais. A atenção vacila e os erros passam batidos. Vale mais à pena interromper o fluxo da escrita na hora e pegar a referência correta na hora. Ou então, na hora de revisar, algumas semanas mais tarde, o cara não se lembra mais de qual citação queria fazer. Aí ferrou mesmo. Uma estratégia boa, pra quem não gosta de mexer com software, é correr na PubMed, copiar a referência e colar na lista. A formatação pode ficar pra depois. Isto evita dissabores futuros. Com o orientador, com a banca examinadores e com os referees que vão ler o artigo submetido. Acreditem em mim.

Leitura metodologicamente orientada
Para aprender a escrever ciência é preciso primeiro aprender a ler ciência. Ler ciência significa orientar metodologicamente a análise dos textos. Sempre se perguntar sobre a validade do trabalho. Se os objetivos e hipóteses estão formulados claramente, se o delineamento escolhido é adequado. se as variáveis confundidoras foram adequadamente controladas, se as medidas são precisas e válidas, se a amostra é adequada (representatividade, poder estatístico), se a análise foi adequada para a natureza dos dados, se os resultados são consistentes entre si e com a literatura, se as conclusões são apoiadas pelos dados etc. Uma boa estratégia é identificar o(s) argumento(s) principais. Um argumento consiste de premissas e conseqüências, situadas num determinado estado de conhecimento. A relação entre as premissas e conseqüências deve ser lógica. Também é importante identificar qualificadores, ou situações em que a relação premissas-conseqüências é atenuada, bem como contra-argumentos. A síntese de um argumento é geralmente expressa sob a forma de uma hipótese, formulada de forma condicional: "Se... então..." Só entendemos um artigo quando identificamos as hipóteses principais subjacentes e o seu contexto argumentativo. Só estamos em condições de escrever e citar se formulamos de forma explícita os argumentos/hipóteses pertinentes ao nosso trabalho. Não tem como fazer citações corretamtente sem conhecer metodologia e sem respeitar a lógica.

Friday, June 14, 2013

Raízes neurológicas da neuropsicologia

Hoje fiquei saudosista. Lembrei-me de quando, há 35 anos atrás, em julho de 1978, eu fiz um estágio de férias nas Enfermarias 14 e 15 da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Foi uma das experiências que mudou minha vida. (A outra foi conhecer a Maria Raquel Carvalho). Eu andava me sentindo intoxicado de literatura marxista e psicanalítica. Resolvi dar uma conferida na neurologia. Foi amor à primeira vista. Saquei que eu levava muito mais jeito para lidar com os pacientes neurológicos do que com os pacientes psiquiátricos. Mas, sobretudo, me identifiquei com as questões colocadas pela neurologia e neuropsicologia. 

Outras instituições e pessoas me influenciaram, mas foi lá na Santa Casa que eu me iniciei na neurologia e neuropsicologia. Foi lá que moldei meu perfil de interesses e o estilo profissional. Foi lá que aprendi a gostar das bases neurológicas e a neuropsicologia das dificuldades de aprendizagem escolar. Sinto-me privilegiado por estar trabalhando há 35 anos nesta área. 

Nâo vou mencionar outros professores e colegas com quem tive a oportunidade de trabalhar e aprender lá na Santa Casa. São muitos e tenho medo de esquecer alguém. Vou falar apenas do Prof. Celso Machado de Aquino, que na época já era professor emérito, mas ainda tinha uma  enorme influência intelectual. O Prof. Celso era uma figura imponente: alto, elegante, culto. Usava um avental branco, todo engomado e gigantesco. O avental dele ia até os tornozelos. Ele ia diariamente à Enfermaria e se ocupava de examinar os pacientes com um detalhe e um preciosismo fantásticos. Ele parecia conhecer todos os detalhes da semiologia neurológica francesa. Foi com ele que eu tomei conhecimento da obra de Dejerine  & Dejerine-Klumpke (1926). O Prof. Celso tinha um gosto enorme em ensinar a examinar. Fazi jus ao título.

Trabalhei nas Enfermarias 14 e 15 da Santa Casa de 1978 até o final de 1983. Quando fiz concurso para a residência médica no final de 1981, o Prof. Celso estava na banca. Ele me perguntou por que eu queria ser neurologista? Se o meu meu pai era médico no interior, por que eu não preferia ir trabalhar com ele? Perguntou-me se eu tinha algum problema com o meu pai...

Respondi-lhe que eu não tinha problema nenhum com meu pai. Que ao contrário, me dava muito bem com ele. Inclusive eu tinha uma bela experiência de sempre trabalhar junto com o Rubén Léo Haase no Hospital Tuparendi durante as minhas férias. Que a minha questão com a neurologia era o desafio intelectual. Eu achava que só a neurologia me proporcionaria trabalhar com as questões científicas e filosóficas que moviam minha imaginação. Que eu não conseguiria isto sendo médico no interior. Nâo sei de onde que o velho tirou esta pergunta. Será que ele achava que eu era um cara assim meio revoltado, meio conflituado?

Duas foram as  leituras mais importantes daquela época, o Barraquer-Bordas (1976) e o Luria (1981). O Barraquer é um livro de fisiopatologia das doenças neurológicas. Ensinou-me a compreender os sintomas neurológicos não apenas a partir da anatomia, como era feito classicamente no século XIX, mas a partir da fisiologia. Neurologia não é só uma questão de anatomia, mas também de função. Isto parece bobagem, mas era uma grande novidade na segunda metade do século XX. Foi apenas  quando alguns discipulos do Sherrington, como o Denny-Brown, começaram a meter fisiologia na neurologia é que a coisa começou realmente a andar.

O Luria foi minha porta para a neuropsicologia. Foi a primeira visão sistemática que eu obtive da neuropsicologia. Aprendi que as observações comportamentais podem ser um caminho muito interessante para compreender a estrutura e função do cérebro. Acabei me identificando totalmente com o negócio. Foi somente alguns anos mais tarde que eu tomei contato com a ciência cognitiva e com a psicometria, completando o tripé de conhecimentos que constituem a neuropsicologia. Tenho o maior carinho pelo Barraquer e pelo Luria. Adoro citá-los. Mas, evidentemente, de lá pra cá muita coisa aconteceu.

Lembrar destas coisas todas me faz refletir sobre como éramos caipiras naquela época. Como vivíamos isolados do mundo, tendo apenas uma vaga idéia de que como as coisas funcionavam no resto. Tipo assim aquele filme sobre o Juscelino: "Bela noite para voar". O Brasil era deliciosamente capira. Ainda somos. Mas não temos mais a mesma inocência.



Estas lembranças das origens neurológicas também enfatizam a natureza interdisciplinar da neuropsicologia (Haase et al., 2012). Hoje, a neuroposicologia só é o que é porque profissionais e pesquisadores de diversas áreas aprenderam a trabalhar juntos para construir uma nova área de conhecimento.

É importante salientar, entretanto, que a felicidade não consiste apenas em trabalhar durante anos e anos em uma área. A alegria maior é poder compartilhar os conhecimentos adquiridos.


Referências

Barraquer-Bordas, L. (1976). Neurología fundamental. Barcelona: Toray.

Haase, V. G., Salles, J. F., Miranda, M. C., Malloy-Diniz, L., Abreu, N., Argollo, N., Mansur, L. L., Parente, M. A. M. P., Fonseca, R. P., Mattos, P., Landeira-Fernandez, J., Caixeta, L. F., Nitrini, R., Caramelli, P., Teixeira Jr. A. L., Grassi-Oliveira, R., Christensen, C. H., Brandão, L., Corrêa da Silva Filho, H., da Silva, A. G. & Bueno, O. F. A. (2012). Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade brasileira de pesquisadores/clínicos em neuropsicologia. Neuropsicologia Latinoamericana, 4, 1-8 (http://neuropsicolatina.org/index.php/Neuropsicologia_Latinoamericana/article/view/125). 


Luria, A. R. (1981). Neuropsicologia fundamental. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos/São Paulo: EDUSP.

Dejérine, J. J. & Dejérine-Klumpke, A. (1926). Sémiologie des affections du système nerveux. Paris: Masson.

Thursday, June 06, 2013

O sistema motor como arqueologia do desenvolvimento cerebral


Há quem não concorde. São poucos, mas existem. Na minha opinião o tchan da neuropsicologia é a correlação anátomo-clinica ou estrutura-função (Haase et al., 2009, 2010). Apesar do charme dos testes, a atividade do neuropsicológo não se restringe ao uso do testes. Existe todo um arsenal de outros conhecimentos que são indispensáveis para o exercício profissional na área. Os testes neuropsicológicos constituem apenas atalhos, métodos padronizados de observação do comportamento, que nos permitem fazer observações clinicas mais precisas e válidas. Mas tem todo um lado neurológico da neuropsicologia (Cytowic, 1996). O seu lado neurológico consiste da epidemiologia clinica das doenças do sistema nervoso e dos princípios anátomo-funcionais que organizam o cérebro e permitem o estabelecimento de correlações anátomo-clínicas. Não tem como fazer neuropsicologia sem conhecer neurociência e neuropatologia (Pliszka, 2004).

O IX Curso de Férias de Neuropsicologia promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677) terá como tema central o lado neurológico da neuroposicologia do desenvolvimento. Serão abordados os aspectos neuropsicológicos das condições neurológicas mais comuns na infância e adolescência, tais como epilepsia, enxaqueca, transtornos de aprendizagem, deficiência intelectual e paralisia cerebral. Estas entidades constituem o feijão-com-arroz da atividade profissional de neurologistas e neuropsicológicos. O curso visa subsidiar profissionais de outras áreas com os conhecimentos neurológicos indispensáveis ao exercício da neuropsicologia coma população infanto-juvenil.

Neste pequeno ensaio vou discutir a relevância do exame do sistema motor para o neuropsicólogo. O método anátomo-clinico ocupa uma posição central no exame neurológico. Desde o início do século XIX os neurologistas se baseiam no fato de que existem relações sistemáticas entre determinadas alterações funcionais e a localização cerebral das lesões ou disfunções (Haase et al., 2008, 2010). O diagnóstico de localização ou topográfico fornece informações preciosas quanto à etiologia ou pelo menos nosologia de uma determinada condição mórbida do sistema nervoso.

E a localização em termos de nível de comprometimento do sistema motor é um dos caminhos mais eficazes para o diagnóstico neurológico. Como já foi dito, isto é sabido há muito tempo. Uma síntese da doutrina neurológica clássica da localização lesional e organização hierárquica do sistema motor foi a obra monumental da vida do neurologista John Hughlings Jackson (Catani, 2011).  Segundo Jackson, o sistema nervoso é organizados em níveis hierárquicos integrados. Cada nível de organização do sistema regula o nível imediatamente inferior, sendo por sua vez controlado pelo nível imediatamente superior. As relações entre os níveis são de inibição e excitação. Os sintomas neurológicos podem, portanto, assumir uma dupla natureza. Podem ser irritativos, quando causados por excesso de atividade neural tal como nas epilepsias, ou podem ser deficitários, quando seqüelares a lesões, tais como uma paralisa ou anestesia.

Mas as lesões não causam apenas sintomas deficitários. Os sintomas decorrentes de lesões podem ser negativos (deficitários) ou positivos (de liberação). Os sintomas de liberação decorrem da perda de controle em um determinado nível hierárquico em decorrência da lesão do nível imediatamente superior. Exemplos de sintomas de liberação são os automatismos, tais como a persistência de reflexos próprios do recém nascido em crianças com lesão cerebral perinatal. O trabalho clinico e teórico de Jackson legou aos neurologistas uma concepção do sistema nervoso como uma entidade maravilhosamente integrada, que é ao mesmo tempo modular e sistemicamente organizada. A herança prática de Jackson e de outros é o método de localização lesional que permite aos neurologistas restringir o campo de busca por uma etiologia a partir do diagnóstico topográfico.

O sistema motor, um dos mais conhecidos e acessíveis clinicamente, desempenha um papel primordial no diagnóstico neurológico e neuropsicológico. Segundo Martha Denckla (1997), o exame do sistema motor constitui uma espécie de arqueologia do sistema nervoso. Identificando o nível de comprometimento motor é possível inferir a fase do desenvolvimento cerebral em que um processo patológico se instalou. Os princípios de organização do sistema motor são válidos também para o cérebro em desenvolvimento, como veremos a seguir.



A fotografia que ilustra este ensaio mostra Ernst Moro (1874-1951), demonstrando a reação de endireitamento e a marcha reflexa em um recém nascido (Weirich & Hofmann, 2005). Um dos precursores da neuropediatria, Moro foi um pediatra de língua alemã, nascido em Graz e posteriormente professor em Heidelberg até que sua carreira fosse abortada pelo Nazismo. Seu nome ficou associado ao famoso reflexo de Moro ou de sobressalto. Mas a fotografia mostra como ele já conhecia toda uma gama de reações motoras próprias do recém nascido e sabia valorizar sua importância clinica.

A partir da década de 1960 com a introdução do tratamento intensivo e o aumento da sobrevida de bebês cada vez mais  prematuros, os neurologistas foram aprendendo a valorizar o desenvolvimento do sistema motor como um indicativo da maturidade fetal. Diversos pesquisadores, tais como Claudine Amiel-Tison (1968) descobriram que existe uma espécide de blueprint genética que regula o desenvolvimento do sistema motor. E que o ritmo de desenvolvimento é o mesmo independentemente do momento em que o bebê nasce. Assim, uma brincadeira que se faz freqüentemte é dizer que se o sorriso social no recém-nascido de termo ocorre após 21 dias de vida extra-uterina, então o sorriso social de um prematuro de 27 semanas deve ocorrer exatamente após 81 dias de vida. O exame neurológico, junto com outros parâmetros clínicos bem como métodos eletroencefalográficos é usado, portanto, para determinar a maturidade fetal.

Pesquisas mais recentes mostram que esta blueprint genética não vale apenas para o desenvolvimento motor, mas pode também ser observada em outras áreas tais como a linguagem. A percepção categorial é o fenômeno através do qual os humanos conseguem perceber quaisquer realizações fonéticas como pertencentes a uma determinada categoria fonêmica, independentemente da sua variabilidade dentro de um espectro de características psicoacústicas. Os recém-nascidos humanos exibem percepção categorial para praticamente todos os possíveis contrastes fonêmicos existentes nas mais diversas línguas. Esta habilidade é perdida até o final do primeiro ano de vida. No último trimestre do primeiro ano o bebê retém apenas a percepção categorial dos pares de fonemas que são contrastivos em sua língua materna. Um pesquisa muito interessante foi conduzida com bebês prematuros por Peña, Werker & Dehaene-Lambertz (2012). Estas autoras demonstraram que a prematuridade não acelera o desenvolvimento da seletividade na percepção categorial de fonemas. Ou seja, bebês prematuros não desenvolvem a seletividade na idade cronológica de 12 meses, mas na idade correspondente, corrigida para sua prematuridade.

Será que ocorre alguma coisa semelhante em relação à prontidão escolar dos prematuros? Será que é preciso dar um desconto para os prematuros e entender que eles podem ainda não estar prontos para enfrentar determinados currículos que são propostos na escola? Um caso clássico são as crianças que fazem aniversário no meio do ano e que entram no primeiro ano mais cedo do que os seus pares. Morrow e cols. (2012) demonstraram que estas crianças têm um risco relativo 1,3 vezes maior de serem diagnosticadas e receberem tratamento medicamentoso para TDAH. Este resultados pode ser interpretado como um sinal de alerta para pais e professores. Muitas dificuldades iniciais de aprendizagem escolar podem resultar de um descompasso entre as exigências curriculares e a maturidade da criança. Muitas vezes precisamos assegurar as famílias e professoras de que crianças que não dão conta de parar quietinhas na sala de aula ou de aprender a ler hoje, podem vir a fazê-lo sem maiores dificuldades daqui a seis meses.

Crianças que apresentam problemas de comportamento ou dificuldades de aprendizagem têm o direito de realizarem uma avaliação neurológica. Este direito precisa ser garantido pelo estado para os mais carentes e não pode lhes ser sonegado com base em argumentos ideológicos relacionados a uma suposta “medicalização do ensino”. Quase todas as crianças com transtornos do desenvolvimento, da aprendizagem e de comportamento apresentam transtornos motores. As dificuldades motoras são observadas na deficiência intelectual, autismo, TDAH, dislexia, discalculia etc. O exame neurológico de grandes grupos de crianças demonstra que as alterações motoras são preditivas de problemas de aprendizagem e comportamentais (Baatstra et al., 2003).

E o neurologista e o neuropsicólogo estão em condições de identificar estas dificuldades, desde que as conheçam. As dificuldades práxicas são indicativas de comprometimentos corticais, as alterações posturais e movimentos involuntários anormais indicam disfunções dos gânglios da base a incoordenação motora sugere déficits cerebelares (Tavano et al., 2010). As alterações motoras são tão importantes que Martha Denckla (2003) propôs utilizá-las de forma sistemática como critério clinico para o diagnóstico de TDAH. Na sua opinião, se a criança ou jovem não apresenta alterações motoras, diminui muito a probabilidade de que os seus sintomas sejam causados por um verdadeiro TDAH. E aumenta a probabilidade de que os sintomas de impulsividade, hiperatividade e desatenção sejam causados por outros fatores, tais como ansiedade ou inadequação das exigências parentais e escolares. Nesta perspectiva, nas palavras de Denckla, o exame do sistema motor constitui uma verdadeira arqueologia do desenvolvimento cerebral. Os déficits motores funcionam como marcadores da intensidade e extensão do agravo que causou os problemas da criança e, ao mesmo tempo, permitem localizar as disfunções na hierarquia sistêmica do desenvolvimento cerebral. As consequências clinicas e ducacionais disto estão longe de ser triviais.

Se você ficou interessado neste assunto, não perca o IX Curso de Férias de Neuropsicologia, promovido pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG e que ocorrerá entre os dias 15 e 19 de julho de 2013 na FAFICH – UFMG (http://www.cursoseeventos.ufmg.br/CAE/DetalharCae.aspx?CAE=5677).



Referências

Amiel-Tison, C. (1968). Neurologicla evaluation of the maturity of newborn infants. Archives of Diseases of Childhood, 43, 89-93.

Batstra, L., Neeleman, J., Hadders-Algra, M. (2003). The neurology of learning and behavioral problems in pre-adolescent children. Acta Psychiatrica Scandinavica, 108, 92-100.

Catani, M. (2011). John Hughlings Jackson and the clinico-anatomical correlation method. Cortex, 47, 905-907.

Cytowic, R. (1996). The neurological side of neuropsychology. Cambridge, MA: MIT Press.

Denckla, M. B. (1997). The neurobehavioral examination in children. In T. E. Feinberg & M. J. Farah (Eds.) Behavioral neurology and neuropsychology (pp. 721-728). New York: McGraw-Hill.

Denckla, M. B. (2003). ADHD: topic update. Brain & Development, 25, 383-389.

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P., da Mata, F. G., Gonzaga, D. M., Silva, J. B. L, Géo, L. A. & Ferreira, F. O. (2008). Um sistema nervoso conceitual para o diagnóstico neuropsicológico. Contextos Clinicos, 1, 125-138.

Haase, V. G., Medeiros, D. G., Pinheiro-Chagas, P. & Lana-Peixoto, M. A. (2010). A "Conceptual Nervous System" for multiple sclerosis". Psychology & Neuroscience, 3, 167-181.


Morrow, R. L., Garland, E. J., Wright, J. M., Maclure, M., Taylor, S. & Dormuth, C. R . (2012). Influence of relative age on diagnosis and treatment of attention-deficit/hyperactivity disorders in children. Canadian Medical Association Journal, 184, 755-762.

Pliszka, S. R. (2004). Neurociência para o clinico de saúde mental. Porto Alegre: ARTMED.

Tavano, A., Gagliardi, C., Martelli, S. & Borgatti, R. (2010). Neurological soft signs feature a double dissociation within the language system in Williams syndrome. Neuropsychologia, 48, 3298-3304.


Weirich, A. & Hoffmann, G. F. (2005). Ernst Moro (1874-1951) - A great pediatric career started at the rise of university-based pediatric research but was curtailed in the shadows of Nazi laws. European Journal of Pediatrics, 164, 599-606.

Wednesday, February 20, 2013

Transtornos da memória semântica: o que é típico e o que é patológico?


As alterações do sistema semântico são uma das coisas mais irritantes do envelhecimento. Esse negócio já me pegou. E há muito tempo. A gente quer falar uma coisa e não vem o nome. Quer se lembrar do nome de um autor e o raio não vem. Isto incomoda demais na sala de aula. Estou careca de saber uma coisa. Já dei aula dezenas de vezes sobre aquilo. E na hora o negócio não vem. Termina a aula e o negócio vem.

O pior é que tem uma série de demências degenerativas, tais  como a doença de Alzheimer e a demência semântico, nas quais um dos principais sintomas é a dificuldade com a memória semântica.
Como saber se as dificuldades que alguém enfrenta com a memória semântica são normais ou patológicas? A neuropsicologia cognitiva tem uma resposta para esta questão.

Uma primeira distinção importante deve ser feita entre anomia e déficits na memória semântica. No envelhecimento típico vão ocorrendo alterações microvasculares na substância branca que lentificam o processamento de informação. Vão surgindo devagarinho microlesões vasculares na substância branca, as quais aparecem nos exames de ressonância magnéticas como pontos de hiperintensidade de sinal (leucoaraiose). Este é o substrato neurofuncional das dificuldades de resgate que começam a incomodar a todos a partir e uma certa idade e que já me pegaram. A informação está lá. Não foi perdida. Mas, devido a essas disfunções da integração córtico-cortical de longa distância, o resgate fica mais difícil, mas lento. E às vezes falha temporariamente. Por vezes é dificultado apenas o acesso ao nome (anomia). O indivíduo consegue se lembrar do conceito e de todos os fatos associados. O que falta temporariamente é o acesso ano nome.

Outras vezes o problema é com a própria informação semântica. O que não vem é o conteúdo mesmo. Nestes casos é importante considerar uma distinção entre transtornos do acesso e degradação das próprias representações semânticas (Warrington & Shallice, 1979). Warrington e Shallice estabeleceram uma série de critérios para distinguir entre estas duas condições: 1) Consistência: Se a representação semântica está degrada, o individuo deve apresentar dificuldades repetidas com determinados itens. Nos transtornos de acesso as dificuldades são variáveis, inconsistentes de um item para outro; 2) Priming: Na degradação da representação semântica não ocorre o fenômeno de priming. Ou seja, a apresentação prévia de um estímulo semanticamente relacionado não ativa o campo semântico do estímulo alvo e. portanto, não facilita o reconhecimento deste; 3) Frequência dos itens: Itens mais frequentes são mais consolidados na memória semântica e possuem representações mais redundantes. Itens mais frequentes são, portanto, mais fáceis de resgatar. No transtorno de acesso não deve haver efeito de frequência; 4) Velocidade de apresentação: Pacientes com déficits de acesso são desproporcionalmente mais afetados pelo intervalo de apresentação entre um estímulo e outro do que pacientes com degradação das representações semânticas.

É possível então estabelecer uma nítida correlação estrutura-função. As dificuldades com a memória semântica no envelhecimento típico, associadas a disfunções metabólico-vasculares da conectividade córtico-cortical, dificultam mais o resgate de informação e aparecem como anomia ou déficit de acesso semântico. A degradação das representações semânticas, com déficits mais graves, consistentes de um ensaio para outro, e não exibindo efeitos de priming, frequência de ocorrência e velocidade de apresentação, é mais típica das doenças degenerativas e progressivas.

Referência

Warrington, E. K. & Shallice, T. (1979). Semantic access dyslexia. Brain, 102, 43-63.

A neuropsicologia no conflito das faculdades


Haase, V. G. & Salles, J. F. (2011). A neuropsicologia no conflito das faculdades. Boletim da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp), Dezembro.


O estudo psicológico da criatividade científica tem mostrado como em muitos casos as descobertas originais e mudanças de paradigma dependem de um longo período de gestação no qual evidências oriundas de diversas disciplinas são integradas, múltiplas hipóteses e modelos concorrentes são gerados e testados, sendo retidos aqueles que resistem ao teste de hipóteses (Simonton, 2002). O caso de Charles Darwin e da teoria da evolução por seleção natural é emblemático, conforme investigado por Gruber (Gruber & Wallace, 2001). Darwin trabalhou na fronteira entre disciplinas, principalmente nos limites entre o que hoje chamamos de Geologia e Biologia. Apesar de, provavelmente, ter experimentado alguma espécie de insight, foi apenas através do árduo trabalho de geração e teste de hipóteses concorrentes ao longo de mais de 20 anos que Darwin conseguiu dar forma à sua teoria.

A história da Neuropsicologia também ilustra a importância do trabalho interdisciplinar para o progresso científico (Shallice, 1988). Apesar de a denominação ser posterior, a Neuropsicologia surgiu com a descoberta de que o método anátomo-clínico também podia ser utilizado para encontrar associações sistemáticas entre localizações lesionais e alterações do comportamento/cognição. Inicialmente a neuropsicologia era praticada por médicos, que estudavam casos isolados e testavam suas hipóteses localizacionistas através da observação clínica e de tarefas psicologicamente rudimentares, criadas ad hoc. A partir de 1865, os estudos de Paul Broca sobre a representação cerebral da linguagem no hemisfério esquerdo fundaram a disciplina e constituem uma grande influência até os dias de hoje para a Neuropsicologia. Ainda, profissionais de reabilitação das lesões cerebrais/comunicação no pós-guerra (Décadas de 1930 e 1940) tratavam dos pacientes com sequelas, especialmente de linguagem (afasias). Por conta destes fatores, a Neuropsicologia era denominada Afasiologia. A partir dos anos 1930 iniciou-se de forma mais sistemática a colaboração interdisciplinar. A contribuição de outras disciplinas levou a um refinamento da caracterização dos processos neuropsicológicos, p. ex., através do uso de métodos psicométricos e de análises linguísticas (Alajouanine, Ombredane & Durand, 1939, McBryde & Weisenburg, 1935, Ombredane, 1929). Um marco da interdisciplinaridade foi a publicação em 1939 da obra Le syndrome de désintégration phonétique dans l’aphasie, cujos autores eram um neurologista (Alajouanine), uma linguista (Durand) e um psicólogo (Ombredane).
A neuropsicologia ganhou novo impulso interdisciplinar nos anos 1960 com a chamada Revolução Cognitiva (Gardner, 1996). Os modelos de processamento de informação e a abordagem quase-experimental de casos isolados permitiram que as hipóteses de correlação estrutura-função fossem formuladas de forma mais precisa e empiricamente testável, contribuindo para aumentar seu poder descritivo e validade preditiva. No entanto, o ímpeto interdisciplinar foi adiante. Desde meados dos anos 1990, uma nova e poderosa ferramenta tecnológica/metodológica, a neuroimagem funcional (especialmente a fMRI) permite que os modelos cognitivos (de processamento de informação ou PPD/PDP) e seus correlatos neurais sejam testados in vivo e de forma não-invasiva. O escopo interdisciplinar foi então expandido e surgiu a Neurociência Cognitiva (Posner & DiGirolamo, 2000).

A Neuropsicologia que já era interdisciplinar, congregando esforços de psicólogos, médicos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, linguistas, etc., passou a fazer parte de um programa mais amplo de pesquisa e clínica, a Ciência Cognitiva, a qual abarca um leque de especialistas que vai da Física e Informática à Filosofia e Antropologia. A trajetória da Neuropsicologia e da Neurociência Cognitiva são ilustrativas de um movimento que vai da multidisciplinaridade (diferentes profissionais trabalhando em equipe) para a interdisciplinaridade (diferentes profissionais trabalhando com objetivos comuns) e desta para a transdisciplinaridade, na qual um fundo comum de pressuposições teóricas e métodos é compartilhado por profissionais de diferentes extrações formativas (Drechsler, 1999).

E quais são as características mais evoluídas e transdisciplinares da Neuropsicologia? Uma das bases teóricas mais sólidas da Neuropsicologia é o pressuposto da modularidade. O cerne metodológico é a avaliação das correlações anátomo-clínicas, ou estrutura-função no jargão contemporâneo, e das dissociações entre funções e tarefas. Mas a Neuropsicologia ainda não evoluiu a ponto de se constituir em uma faculdade autônoma. Pode-se fazer uma analogia entre o estado atual da neuropsicologia com a evolução do Pokémon Pikachu. O personagem se originou de uma forma bebê denominada Pichu e hesita em evoluir para Raiochu. A Neuropsicologia ainda é aprendida na pós-graduação e praticada por profissionais oriundos de faculdades distintas e congregados em diferentes corporações de artes e ofícios. A situação é paradoxal. Se por um lado, o desenvolvimento é gigantesco, por outro ainda não foi o suficiente para lhe conferir a força e o status de uma corporação própria, resguardando-a do conflito das faculdades[1].

O conflito das faculdades se instala no momento em que uma corporação de artes e ofícios declara que a Neuropsicologia lhe pertence. E que profissionais de outras áreas não podem “brincar” com ela. Quando uma corporação diz assim: “só os meus afiliados podem utilizar instrumentos de exame dos processos neuropsicológicos, mesmo nos casos em que esses outros profissionais de outras áreas tenham sido os responsáveis pelas pesquisas de normatização e validação de tais instrumentos”. Além de ignorar a evolução histórica e a natureza inter- e transdisciplinar do conhecimento neuropsicológico, esta posição negligencia a longa tradição de exame do estado mental em Neurologia e Psiquiatria (Hodges, 1994, Strub & Black, 1993) e da linguagem e funções cognitivas relacionadas em Fonoaudiologia. A qual, em última análise, remonta ao próprio Hipócrates (Todman, 2008). Profissionais de Medicina, fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e outras profissões trabalham no seu dia a dia com pacientes que precisam ter seu estado mental avaliado a partir de uma perspectiva neuropsicológica. Perspectiva esta que se baseia no conhecimento cumulativo sobre correlação anátomo-clínica e não primordialmente em construtos psicológicos. Nós vivemos em uma época de assistência à saúde baseada em evidências, na qual a validação e normatização de procedimentos diagnósticos é um imperativo ético (Porter, 2004). Os profissionais de saúde não têm apenas o direito, eles têm o dever de validar seus instrumentos avaliativos/diagnósticos.

O Conselho Federal de Psicologia tem se pronunciado de maneira reiterada no sentido de tentar impedir que profissionais de outras áreas utilizem os instrumentos de diagnóstico validados e normatizados por esses mesmo profissionais de outras áreas que não a psicologia. Se este conselho defende que sua legislação contempla os trabalhos com todas as funções neuropsicológicas, é bem verdade que a legislação de outras profissões da área da saúde também contempla. É de se perguntar se os melhores interesses dos pacientes neuropsicológicos estão sendo contemplados com esta atitude. Também pode-se perguntar se os próprios interesses corporativos dos psicólogos são atendidos por esta resolução. Que benefícios podem auferir os psicólogos do isolamento de outros profissionais que atuam no campo interdisciplinar da Neuropsicologia, atendendo crianças, adultos e idosos com dificuldades de aprendizagem, transtornos de desenvolvimento e doenças neurológicas e psiquiátricas? Além de refletir esforços interdisciplinares, o interesse atual por Neuropsicologia e Neurociência Cognitiva pode ser tomado como uma medida do sucesso da própria Psicologia. Do exame sistemático e validado do estado mental pelos mais diferentes profissionais resultará um aumento e não uma diminuição da demanda pelos serviços dos profissionais de Psicologia.

A atual disputa das faculdades que vivenciamos no Brasil é reminiscente de uma mais antiga, que foi objeto do último livro publicado por Immanuel Kant, em 1798 (Kant, 1993). Na obra intitulada “O conflito das faculdades”, Kant procura salientar a importância da Filosofia frente às faculdades mais estabelecidas, como a Teologia, o Direito e a Medicina. Aos interesses pragmáticos dos quais derivava o poder das faculdades mais estabelecidas à época, Kant contrapôs a defesa da racionalidade e da busca da verdade, as quais ele associava à Filosofia. Sabidamente, Kant era um idealista e no mundo contemporâneo prevalecem os interesses pragmáticos. Não seria o caso então de nos perguntarmos, para além dos interesses corporativos, como os interesses pragmáticos dos pacientes neuropsicológicos serão mais bem atendidos?


Referências

Alajouanine T., Ombredane A. & Durand M. (1939). Le syndrome de désintégration
phonétique dans l’aphasie. Paris: Masson.

Drechsler, R. (1999). Interdisziplinäre Teamarbeit in der Neurorehabilitation. In P. Frommelt & H. Grötzbach (Orgs.) Neurorehabilitation. Grundlagen, Praxis, Dokimentation (pp. 54-64). Berlin: Blackwell.
Gardner, H. (1996). A nova ciência da mente. Uma história da revolução cognitiva. São Paulo: EDUSP.

Gruber, H. E. & Wallace, D. B. (2001), Creative work. The case of Charles Darwin. American Psychologist,  56, 346-349.

Hodges, J. R. (1994). Cognitive assessment for clinicians. Oxford: Oxford University Press.

Kant, I. (1993). O conflito das faculdades. Lisboa: Edições 70.

McBride, K. & Weisenburg, T. (1935). Aphasia. New York: Commonwealth Fund.

Ombredane, A. G. (1929). Les troubles mentaux de la sclérose en plaques. Paris: PUF.

Porter, R. (2004). Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record.

Posner, M. I., & DiGirolamo, G. J. (2000). Cognitive neuroscience: origins and promise. Psychological Bulletin, 126, 873-889.

Simonton, D. K. (2002). A origem do gênio. Perspectivas darwinianas sobre a criatividade.  Rio de Janeiro: Record.

Strub, R. L. & Black, F. W. (1993). The mental status examination in neurology (3rd. ed.). Philadelphia: Davis.

Todman, D. (2008). Epilepsy in the Graeco-Roman world: Hippocratic medicine and Asklepian temple medicine compared. Journal of the History of Neuroscience, 17, 435-441.


[1] É preciso salientar aqui, entretanto, que não estamos defendendo que a Neuropsicologia se constitua em uma faculdade autônoma. Apenas registramos o fato de que não é.

Sunday, February 17, 2013

“Avaliação da funcionalidade na Síndrome de Turner: o uso do modelo da CIF”


Não percam mais uma atividade do  II Congresso Mineiro de Neuropsicologia, que acontecerá entre 17 e 20 de abril de 2013 na UFMG. A Andressa Moreira Antunes, pesquisadora do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG) vai falar sobre funcionalidade na síndrome de Turner, a partir da perspectiva biopsicossocial da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF-OMS).

A síndrome de Turner é uma condição decorrente de alterações do segundo cromossoma sexual feminino, cromossoma X. Pode ser causada por uma deleção completa ou parcial de um cromossoma X, bem como por outros tipos de anomalias, tais como translocações ou cromossoma X em anel. As anomalias podem estar presentes apenas em uma fracção das células (mosaicismo).  Além do fenótipo somático, caracterizado por diversos graus de baixa estatura, alterações hormonais, malformações somáticas etc., o fenótipo cognitivo e comportamental é bastante característico (vide revisões em Kesler, 2007,  Ross et al., 2000). Um dos achados mais salientes é uma discrepância entre o QI verbal e o QI de execução. Estas pessoas apresentam geralmente uma inteligência verbal normal associada a dificuldades cognitivas específicas no domínio visoespacial, funções executivas e na aprendizagem da matemática. Dificuldades relacionadas a timidez e ansiedade social são também classicamente mencionadas (Kesler, 2007, Ross et al., 2000).

Para compreender o interesse pela funcionalidade na síndrome de Turner podemos começar por uma historinha acontecida há quase trinta anos. Um professor estava falando sobre deficiência intelectual numa daquelas disciplinas  introdutórias à psicologia (PSY 101) nos Estados Unidos, com centenas de alunos em um auditório. Uma moça levantou o dedo e disse que tinha um erro no livro escrito e adotado pelo professor. Lá no livro dizia que a síndrome de Turner seria uma causa de deficiência intelectual. A moça chamou atenção para o fato de que ela tinha síndrome de Turner e estava na faculdade. Ela acabou passando com conceito A. O professor teve que corrigir o livro na edição seguinte.

Se isto já era verdade há quase trinta anos atrás, imaginem hoje em dia. Mas não é verdade apenas para a síndrome de Turner. É verdade para todas as síndromes genéticas e para os fenômenos biológicos de um modo em geral. Uma característica distintiva dos fenômenos biológicos é a variabilidade interindividual. E isto vale também para as síndromes genéticas. Não existem dois indivíduos iguais. A variabilidade é imensa e este é um dos principais motivos pelos quais é muito difícil estabelecer um diagnóstico. Os profissionais fixam na cabeça um protótipo e só pensam no diagnóstico quando os sinais e sintomas são muito evidentes. Isto contribui para que a prevalência das síndromes genéticas pareça ser muito menor do que realmente é. Um grande número de casos simplesmente não é diagnosticado. E como não são diagnosticados, os indivíduos afetados, suas famílias e suas educadoras não se beneficiam dos conhecimentos advindos do diagnóstico. A síndrome de Turner (e outras) constituem um fator de risco para deficiência intelectual. Mas nem todos os indivíduos vão ser afetados e no mesmo grau. E a probabilidade de realizar um diagnóstico é menor quando o indivíduo não apresenta malformações graves ou deficiência intelectual.

Esta questão da variabilidade é mais verdade ainda hoje, e principalmente no que se refere à síndrome de Turner. Uma parte da variabilidade fenotípica é relacionada à própria variabilidade dos mecanismos genéticos. Diferentes tipos de alterações cromossômicas, tais com mosaicismo e translocações, causam manifestações fenotípicas distintas. Mas tem também um fator adicional. A introdução do tratamento com hormônio de crescimento e estrógenos mudou completamente o panorama (Davenport et al., 2007). O tratamento permite uma normalização da aparência física, principalmente, no que se refere à estatura, mas também no desenvolvimento de características sexuais secundárias. Uma grande questão neuropsicológica atual é saber até que ponto o tratamento é eficiente na reversão no perfil específico de dificuldades de aprendizagem (Davenport, 2012). Ao invés de apresentarem deficiência intelectual, a maioria das pessoas afetadas tem dificuldades de aprendizagem, relacionadas a um perfil discrepante de habilidades. Como já foi mencionado, as dificuldades maiores são observadas nas áreas da cognição visoespacial e a na aprendizagem da matemática.  Considerando que a frequência de síndrome de Turner em nativivas é de 1/2000 (Davenport et al., 2007) e que  expectativa de vida vem aumentando progressivamente, podemos ficar imaginando quantas meninas que lutam com dificuldades de aprendizagem da matemática apresentam uma síndrome de Turner que não foi diagnosticada.

O tratamento medicamentoso resulta em benefícios cognitivos? Nós ainda não temos informações suficientes para responder de forma definitiva a esta questão (Davenport, 2012). Mas há razão para otimismo. Os estudos sobre funcionalidade, atividades e participação indicam atualmente que para a maioria das portadoras de síndrome de Turner o prognóstico é muito bom (McCauley et al., 2001, Rolstad et al., 2007). Há uma perspectiva real de normalização. De levar uma vida produtiva e feliz, de realizar o potencial de desenvolvimento. Daí a importância do diagnóstico. Somente o diagnóstico, realizado o mais precocemente possível, permite identificar as eventuais dificuldades, instituir o tratamento e orientar as famílias e educadoras. Sem diagnóstico, sem chance.

E o diagnóstico deve ser o mais amplo possível. O diagnóstico não se deve limitar ao estabelecimento da etiologia e comorbidades. Nem restringir-se aos déficits cognitivos. O diagnóstico precisa abranger também o impacto da condição de saúde sobre os diversos níveis de funcionamento do indivíduo. Aí é que entra a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), proposta pela Organização Mundial da Saúde (Andrade et al., 2009, Haase et al., 2012). O modelo biopsicossocial subjacente à CIF permite avaliar o impacto das condições de saúde de forma mais abrangente, integrando informações sobre a estrutura e função do organismo com a capacidade funcional (atividades e participação), os facilitadores e barreiras ambientais e as  características subjetivas do indivíduo. Estudos utilizando o referencial da CIF são importantes para que compreendamos melhor, p. ex., como aspectos relacionados ao fenótipo cognitivo e comportamental repercutem na vida e o que pode ser feito para prevenir e melhorar, para potencializar o desenvolvimento.

Como foi dito acima, no caso da síndrome de Turner as notícias são muito boas. Vejamos o caso do funcionamento social. Dificuldades sociais, caracterizadas como timidez e ansiedade social foram frequentemente descritas em pessoas com a síndrome de Turner, as quais podem estar relacionadas a alterações anátomo-funcionais na amígdala e circuitos conexos (Burnett et al., 2010). No entanto, estas dificuldades não aparecem em todas as pessoas afetadas e muitas vezes são detectáveis apenas através de registros psicofisiológicos ou de imagem neurofuncional. Um fator de risco é relacionado ao fenômeno de imprinting, ou origem parental do material genético. O risco de dificuldades sociais é maior nos casos em que o cromossoma X conservado é de origem materna (Skuse et al., 1997). O mesmo fenômeno pode ocorrer em relação às habilidades cognitivas, tais como a aprendizagem da matemática (Ergür et al., 2008). Estudos com grupos de mostram por outro lado, que os níveis de adaptação psicossocial nas pacientes de Turner são normais (McCauley et al., 2001). A prevalência de transtornos psiquiátricos não é diferente daquela observada na população em geral. Ou seja, a variabilidade interindividual é muito grande. Diversos fatores influenciam o fenótipo. A síndrome de Turner pode ser considerada como um fator de risco para déficits cognitivos e dificuldades de adaptação psicossocial Mas um grande contingente de pacientes funciona muito bem.

Uma medida das possibilidades é dada por um estudo conduzido na Suécia com 57 mulheres portadoras de síndrome de Turner com idade média de 36 anos (Rolstad et al., 2007). Dentre as que tinham relacionamentos conjugais, a atividade sexual tinha se iniciado com apenas 2 a 3 anos de atraso em relação à média da população em geral. Trinta e cinco por cento das participantes estavam casadas ou tinham um relacionamento conjugal estável. E majoritariamente estas mulheres relataram satisfação com os relacionamentos conjugais. Também não diferiam da população em geral quanto à expressão do desejo sexual e frequência da atividade sexual. Além da variabilidade genética, certamente uma grande percentagem da variância fenotípica é explicada por fatores ambientais (Stochholm et al., 2012). O acesso a serviços diagnósticos e terapêuticos, a qualidade da educação e do aconselhamento psicológico, o funcionamento e incentivo fornecido pela família etc., todos estes são fatores que influenciam o prognóstico, tanto no que se refere à mortalidade, morbidade e funcionalidade.  A distribuição do diagnóstico da síndrome de Turner apresenta uma distribuição bimodal em relação à idade (Batch, 2002). O primeiro pico ocorre logo após o nascimento, quando são identificados os casos mais graves.  Um segundo pico ocorre na adolescência, em função da ausência do desenvolvimento de características sexuais secundárias. Um grande desafio atual é identificar as meninas portadoras da síndrome na idade escolar. Numa época da vida na qual elas ainda possam se beneficiar mais significativamente da terapia normal e numa época na qual elas também possa se beneficiar do diagnóstico e intervenções para dificuldades de aprendizagem.


Referências

Andrade, P. M. O., Ferreira, F. O. & Haase, V. G. (2009). A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e o trabalho interdisciplinar no Sistema Único de Saúde (SUS). In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.) Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 67-88). Belo Horizonte: COOPMED (ISBN: 978-85-7825-003-4) (http://www.coopmed.com.br/site/catalog/product_info.php?products_id=74).

Batch, J. (2002). Turner syndrome in childhood and adolescence. Best Practice & Research Clinical Endocrinology and Metabolism, 16, 465-482.

Berch, D. B. & Bender, B. G. (2000). Turner syndrome. In  K. O. Yeates, M. D. Ris, & H. G. Taylor (Eds) Pediatric neuropsychology. Research, theory, and practice (pp. 252-273). New York: Guilford.

Burnett, A. C., Reutens, D. C. & Wood, A. G. (2010). Social cognition in Turner's syndrome. Journal of Clinical Neuroscience, 17, 283-286.

Davenport, M. L. (2012). Growth hormone therapy in Turner’s syndrome. Pediatric Endocrinology Reviews, 9 (Suppl. 2), 723-724.

Davenport, M. L., Hooper, S. R., & Zeger, M. (2007). Turner syndrome. In M. M. Mazzocco & J. L. Ross (Orgs.) Neurogenetic developmental diserders. Variations of manifestion in childhood (pp. 3-45). Cambridge, MA: MIT Press.

Ergür, A. T., Öcal, G., Bergeroglu, M., Tekin, M., Kiliç, B. G., Aycan, Z., Kutlu, A., Adiyaman, P., Stklar, Z., Akar, N., Sahin, A., & Akçayöz, D. (2008). Paternal X could relate to arithmetic function: study of cognitive function and parental origin of X chromosome in Turner syndrome. Pediatrics International, 50, 172-174.

Haase, V. G., Pinheiro-Chagas, P. & Andrade, P. M. O. (2012). Reabilitação cognitiva e comportamental. In A. L. Teixeira & A. Kummer (Orgs.) Neuropsiquiatria clinica (pp. 115-123). Rio de Janeiro: Rubio (http://www.rubio.com.br/descricao.asp?cod_livro=A46792).

Kesler, S. R. (2007). Turner syndrome. Child and Adolescent Psychiatric Clinics of North America, 16, 709-722.

McCauley, E., Feuillan, P., Kushner, H., & Ross, J. L. (2001). Psychosocial develpment in adoelscentes with Turner syndrome. Developmental and Behavioral Pediatrics, 22,   360-365.