A hipótese de que a aprendizagem da aritmética dependa interação entre um primitivo conceitual de magnitude (o senso numérico) e a experiência da criança com a a formalização da aritmética na sua cultura parece ser o "only game in town da cognição numérica”.
O construtivismo achava que o conceito de número e a aritmética se desenvolviam na criança a partir da construção dos processos lógicos na interação com o ambiente físico (Piaget) e social (Vygotsky). Segunda essa perspectiva o conceito de número e a aritmética resultam de um processo bottom-up, partindo de uma tabula rasa. A criança começa praticamente do zero e vai intuito os conceitos numéricos e procedimentos aritméticos em função ferramentas que lhe disponibilizadas pela cultura.
Aí apareceu o Stanislas Dehaene e propôs um modelo epigenético. O modelo epigenético não nega o papel da aprendizagem e a influência da cultura. Mas propõe que a criança não começa do nada. Ao nascer, o bebê dispõe de uma série de primitivos conceituais que lhe permitem adquir os conceitos e ferramentas culturais disponíveis. Um desses primitivos conceituais ou intuições é o senso numérico.
O termo senso numérico (em sentido estrito) se refere à habilidade de discriminar rapidamente (sem contar) a numerosidade dos conjuntos. O senso numérico está presente em bebês, em outras espécies animais e constitui um universal cultural. A hipótese subjacente é que o senso numérico seja uma estarégia evolutivamente estável, fazendo parte do equipamento cognitivo padrão de uma série de espécies animais.
Só existem tarefas expirementais para avaliar o senso numérico. Não existem testes psicométricos comercialmente disponíveis que permitam essa avaliação. Isso é um complicador e tanto. Ainda mais porque as diversas tarefas para mender o senso numérico não correlacionam-se entre si e apresentam uma série de dificuldades com o controle experimental de parâmetros perceptuais.
Uma das tarefas mais utilizadas é a comparação não-simbólica de magnitudes numéricas. Nessa tarefa são apresentados dois conjuntos s de pontos na tela do computador e a pessoa precisa decidir rapidamente e sem contar qual é o maior conjunto. As medidas dependentes podem ser o tempo de reação, a acurácia e a fração de Weber.
A fração de Weber é um operacionalização extremamente elegante do senso numérico. A fração de Weber corresponde à mínima diferença discriminável entre dois conjuntos. Ou seja, à just noticeable difference da psicofísico clássica. Como o nome diz, a fração de Weber é expressa como uma proporção, variando de 0.5 no bebê para menos de 0.15 em adultos jovens.
A existência de uma diferença minimamente discriminável e o fato de que essa diferença é expressa como uma razão, sugerem que as representações não-simbólicas de magnitude são aproximadas e obedecem à lei de Weber-Fechner, caracterizada pela variabilidade escalar e proporcionalidade (ratio dependency) (vide Figura1).
Figura 1 - Duas das propriedades principais do senso numérico: variabilidade escalar e proporcionalidade (ratio dependency) (Odic & Starr,2018).
O termo variabilidade escalar se refere ao fato de que a acurácia das discriminações diminui à medida que aumenta a magnitude dos números representados. Isso também é conhecido como efeito da magnitude e corresponde à Lei de Fechner. A ratio dependency se traduz no chamado efeito da distância e corresponde à Lei de Weber: Quanto menor a razão numérica que diferencia dois conjuntos, maior a dificuldade em discriminar a numerosidade dos dois conjuntos. À medida que a razão numérica entre os dois conjuntos diminui, chega-se a um limite de resolução do sistema, a fração de Weber.
Para constatar que o senso numérico é o “only game in town” da numérica basta treqüentar algum congresso da área ou ler uma meia dúzia de artigos escolhidos aleatoriamente. A maioria dos pesquisadores está obcecada com a hipótese do senso numérico. Enquanto alguns tentam obter evidências consistentes com essa hipótese, a diversão da maioria é obter evidências que a refutem.
Quais são os principais pontos de controvérsia? As evidências disponíveis indicam que: a) as medidas do processamento numérico não-simbólico se correlacionam de forma mais fraca com o desempenho em aritmética (r = 0.2) do que as medidas do processamento numérico simbólico (r = 0,3); b) as diversas medidas (TR, acurácia, fração de Weber) e tarefas (comparação, estimação, linha numérica) se correlacionam de forma muito fraca, muitas vezes não significativa; c) o desempenho nas tarefas de comparação não-simbólica de magnitudes sofre interferência de parâmetros visuais dos estimulo, impondo demandas de processamento executivo inibitório.
A hipótese que o controle inibitório seja importante para o desempenho em tarefas de comparação não-simbólica de magnitudes numéricas foi examinada por Merkley, Thompson e Scerif (2016).
A hipótese do senso numérico pressupõe que dimensão relevante seja a numerosidade, ou seja, numerosidade discreta. O piroblema é que a numerosidade discreta co-varia com parâmetros contínuos dos estímulos visuais empregados. P. ex., o número de pontos em um conjunto co-varia com a superfície total ocupada pelos estímulos. Quando se controla experimentalmente a superfície total, a superfície de cada estimulo varia correspondentemente. Ou seja, as dimensões continuas dos estímulos que co-variam com a numerosidade podem dar pistas para o participante do estudo. Dessa forma, a medida da numerosidade (discreta) se confunde com a magnitude contínua dos estimulos.
Para resolver esse problema, os pesquisadores geralmente fazem com que em metade dos ensaios a numerosidade co-varie com as dimensões contínuas na outra metade dos ensaios isso não ocorra (Figura 2).
Figura 2 - Tarefa de comparação não simbólica de magnitudes utilizada por Merkley et cols. (2016). Na condição incongruente (A) a superfície total ocupada pelas diversas numerosidades é mantida constante, colocando a numerosidade em conflito potencial com outras dimensões dos estímulos tais como superfície média dos pontos. Na condição congruente (B) o número e a área co-variam, de modo que a dimensão contínua pode contribuir para a resposta correta.
A dificuldade em equilibrar os parâmetros contínuos e discretos das numerosidades envolvidas é compatível com a hipótese de que a função executiva controle inibitório desemepenhe um papel importante na tarefa de comparação não-simbólica de números. Essa hipótese foi testada por Merkley e cols. com crianças de 3/4 (mais jovens) e 5/6 anos (mais velhas). Se o controle inibitório for importante, as crianças terão mais dificuldade na situação incongruente, na qual precisam inibir a dimensão continua dos estímulos e basear sua decisão na numerosidade discreta.
Além da tarefa de comparação não-simbólica de magnitudes em situações de congruência e incongruência das dimensões discretas e contínuas das magnitudes dos estímulos (Figura 2), foi utilizada uma tarefa de Stroop para tamanho de animais como medida do controle inibitório (Figura 3). A criança precisa decidir qual figura é maior. Na condição congruente (A) a figura do elefante é maior do que a figura do rato. Na condição incongruente (B) a figura do rato é maior do que a figura do elefante.
Figura 3 - Tarefa de Stroop para tamanhos de animais utilizada por Merkley e cols. (2016). A criança precisa decidir qual figura é maior. Na condição congruente (A) a figura do elefante é maior do que a figura do rato. Na condição incongruente (B) a figura do rato é maior do que a figura do elefante.
Em um primeiro experimento, Merkley e cols. (2016) observaram que o desempenho na tarefa de Stroop para tamanhos de animais se correlacionava com o desempenho em uma bateria de testes padronizados de aritmética. Juntos, a idade (Beta = 0.52), a inteligência (Beta = 0.39)e a acurácia na tarefa de Stroop de animais (Beta = 0,19) explicavam 81% da variância em aritmética. Isso significa que o controle inibitório é um fator explicativo do desempenho em aritmética na idade pré-escolar.
No segundo experimento Merkley e cols. (2016) compararam o desempenho de crianças mais jovens (3/4 anos) e crianças mais velhas (5/6) nas tarefas de Stroop de animais e de comparação não simbólica de magnitudes numéricas.
Não houve diferença significativa entre as crianças menores e maiores na condição congruente da tarefa de Stroop de animais. Entretanto, na condição incongruente as crianças menores tiveram um desempenho muito pior na tarefa de Stroop.
Da mesma forma, a acurácia das crianças menores foi significativamente menor do a acurácia das crianças maiores na versão incongruente (comparativamente à congruente) da tarefa de comparação não-simbólica de magnitudes.
Adicionalmente, a acurácia na condição incongruente da comparação não-simbólica de magnitudes se correlacionou negativa e significativamente com o desempenho na tarefa de Stroop para tamanhos de animais (r = -0.35). Não houve correlação entre a condição congruente da comparação de magnitudes não-simbólicas e a tarefa de Stroop para tamanhos de animais.
Infelizmente, nesse estudo não foi investigada a associação dessas duas tarefas com o desemepenho em aritmética.
O estudo mostra, entretanto, que a hipótese de que o desempenho nas tarefas que avaliam senso numérico recruta funções de controle inibitório precisa ser considerada seriamente. O estudo sugere também que a dimensão contínua pode ser mais importante nos juízos de numerosidade das crianças menores e que, à media que o controle inibitório aumenta, a criança passa a decidir progressivamente com base na numerosidade discreta.
Se isso for verdade, pode ser que várias dimensões continuas e descontinuas de magnitude contribuam para o processamento numérico na infância inicial. E que, com o tempo, à medida que a criança adquire experiência com os números e melhora o seu funcionamento executiva, o processamento numérico discreto vai crescendo de importância.
O estudo de Merkley e cols. (2016) convidam a uma reinterpretação dos resultados de Piaget nas tarefas de conservação de quantidade. Os problemas enfrentados por crianças pequenas na tarefa de conservação de quantidade podem estar relacionadas com a dificuldade para inibir a dimensão irrelevante comprimento.
Referência
Merkley, R., Thompson, J., & Scerif, G. (2016). Of huge mice and tiny elephants: Exploring the relationship between inhibitory processes and preschool math skills.
Frontiers in Psychology,
6, 1903 (doi: 10.3389/fpsyg.2015.01903) (
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